A Perda de Identidade e a Crise do Espírito no Século XXI

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Por Fábio Firmino, postado originalmente em Athenaion e republicado com autorização do autor.

Comentário inicial: existe uma grande correspondência entre o conceito de ethos grego e o de þēaw anglo saxão.

Uma das características mais perceptíveis no mundo ocidental atual é a de que, de uma maneira geral, as pessoas parecem estar muito confusas. Há uma incessante procura por algo que lhes dê significado e, ao mesmo tempo, uma tentativa de abandono de rótulos e definições antigas por medo delas serem demasiado limitantes. Essa busca frenética por uma identidade ocorre, paradoxalmente, junto a um afastamento efetivo das identidades pré-existentes.

O homem sempre construiu sua identidade a partir dos grupos a que pertencia: família, clã, tribo, povo e nação. Da família tiramos o sobrenome, do povo tiramos a língua e a cultura, da nação temos a organização política e administrativa. O modo como a coletividade se estrutura não somente a define; define também uma parte importante de cada um dos indivíduos.

A sociologia denomina o conjunto de traços e modos de comportamento que conformam a identidade de uma determinada coletividade como o seu ethosEthos refere-se diretamente às características imateriais de um grupo: sua visão de mundo, sua cultura, seus costumes. Da mesma raiz etimológica de ethos surgem as palavras etnia (uma coletividade de pessoas com o mesmo ethos) e ética (o modo de lidarmos melhor uns com os outros).

Quando os povos ocidentais enfraqueceram seu ethos, sua identidade enquanto grupo também se enfraqueceu. Para as pessoas deste lado do mundo, uma parte muito importante do que nos dava significado foi perdida. A identidade de nosso grupo é uma das nossas primeiras referências pessoais. O processo que enfraqueceu nossa identificação enquanto grupo também prejudicou nossa identificação enquanto indivíduos.

Como se deu esse enfraquecimento do ethos do ocidente?

Como resultado de um longo processo histórico que se iniciou com o cristianismo. O secretário-geral do YSEE, Vlassis Rassias, costuma afirmar que o cristianismo é um destruidor de etnias. Ao se impor como religião hegemônica, ele se sobrepõe a costumes, visões de mundo, valores e outras características fundamentais do ethos dos povos convertidos. O cristão recém-convertido vê-se obrigatoriamente imerso num conjunto de tradições completamente diferentes de seu grupo original; é convidado a abandonar o convívio “mundano” para habitar o convívio “dos eleitos”. Com a conversão da Europa e das Américas, toda uma diversidade cultural e étnica foi subjugada por um processo de uniformização que visava estabelecer um único ethos universal: o cristão.

Quando o ethos cristão, por sua vez, se enfraqueceu, os povos cristianizados já estavam muito distantes de sua identidade original. Nem o Renascimento, em seu esforço histórico de revolução, ou seja, de retorno às raízes, foi suficiente para resgatar o que havia sido perdido.

Ao enfraquecimento da identidade coletiva seguiu-se o crescimento do individualismo. Valores e costumes coletivos foram cedendo espaço e importância a valores e costumes individuais, até que, no século XXI, o indivíduo ocidental se vê como a maior referência para si mesmo; não mais fruto de seu meio, mas seu grande transformador.

Ao querer ampliar o seu alcance individual, libertando-se das amarras e limitações da tradição, o que o homem ocidental de fato conseguiu foi enfraquecer o seu espírito. A ambição do homem para se tornar o centro de seu próprio universo não aumentou sua potência, pelo contrário, o fez perder elementos preciosos de sua potência original. Contra todas as expectativas individualistas, o homem não se basta sozinho. Ele precisa de elementos que o identifiquem que não se encontram em seu eu individual.

A tentativa de reprimir a necessidade humana de um ethos não parece ter funcionado. Como toda pulsão reprimida, o enfraquecimento do ethos gerou nas pessoas uma instintiva e passional busca por quaisquer grupos que lhes devolvessem a sensação de pertencimento, a despeito de suas ideias e ações poderem soar excessivas ou extremadas. Membros de grupos fanáticos, extremistas e todo o tipo de radicais demonstram um esforço de pertencimento tão patológico que mais parece uma reação a um não pertencimento social crônico. A necessidade de uma delimitação de fronteiras para demarcar diferenças sociais e psicológicas chega a ser tão intensa que o discurso separatista torna-se um discurso de ódio ao outro.

Em um tempo de rompimentos como o nosso, parece estranho o aparecimento de tantos movimentos ultraconservadores. Apesar de possuírem uma talvez injusta reputação de retrógrados, os ultraconservadores são, de fato, produtos bem modernos. Somente em um momento de desestruturação e perda de parâmetros como o atual é que o esforço exagerado para manter esta estrutura e suas próprias referências se justifica. Os gritos ultraconservadores são apelos por uma ordem que eles tentam desesperadamente salvar, e que só faz sentido porque eles sentem que esta ordem está prestes a ruir, ou já ruiu por completo.

Com resultados semelhantes, seguem grupos que buscam romper situações sociais já estabelecidas. Alguns grupos cujo objetivo original era reparar injustiças históricas acabaram seguindo um viés radical que parece apenas querer substituir uma injustiça por outra. A carência identitária, além de favorecer uma delimitação exagerada de fronteiras, faz com que faltem a esses radicais parâmetros que definam o que seria de fato um mundo mais justo para as minorias que defendem.

Hobsbawm via o século XX como a “era dos extremos”. O século XXI parece não ser muito diferente. O extremismo prossegue forte, como uma reação da coletividade à perda progressiva de sua própria identidade.

Outro sintoma claro desse enfraquecimento patológico de identidade – fortalecido pelo crescimento do materialismo e da sociedade de consumo – é o esvaziamento espiritual característico de nossa era.
Depois que o cristianismo privou os povos ocidentais da maioria de suas referências espirituais identitárias, o materialismo que se seguiu surgiu como alternativa para ocupar o vazio que restou. A referência espiritual da realidade foi substituída pela referência material, enquanto os anseios espirituais foram entorpecidos por sensações muito voláteis de prazer proporcionadas pela sociedade de consumo.

Não é coincidência que esse esvaziamento espiritual seja visto de maneira tão forte justamente onde mais se promove o consumo voraz e incessante: os EUA. A confusão de religiões e seitas dos EUA demonstra o caos espiritual dessa nação. Ao mesmo tempo palco de alguns dos movimentos cristãos mais conservadores de que se tem notícia, como os puritanos e os amish, os EUA são também berço de movimentos religiosos dos mais excêntricos, como a cientologia. Também foi a partir dos EUA que o movimento espiritualista conhecido como New Age cresceu e se difundiu pelo mundo.

Em um primeiro momento, poder-se-ia supor que uma profusão de diferentes religiosidades levasse à saciedade espiritual do povo norte-americano. Nada mais longe da verdade. A abundância das mais diferentes sendas religiosas se origina da mesma carência identitária que produz os diferentes grupos extremistas. Não é por acaso que tantos modelos usados pelos atuais grupos extremistas também venham de lá.

Nos EUA há dois grandes exemplos de espiritualidade, aparentemente muito diferentes, que são resultados de um mesmo contexto. Se por um lado há a teologia da prosperidade, que se empenha na obtenção de riquezas materiais por meios espirituais (melhor emprego, melhores bens, saúde física, etc.), por outro há os que buscam as religiões que lhes parecem mais exóticas, a fim de tentar preencher o espaço deixado pela visão religiosa anterior.

Ambas as atitudes são próprias de sociedades de consumo.

Aquele que busca riquezas materiais é explicitamente materialista, não é necessário discorrer sobre isso. O buscador de religiões exóticas também o é, por comportar-se como um colecionador de experiências, um perseguidor de sensações. Elementos de culturas ancestrais servem-lhe como produtos de consumo dispostos como pratos em um cardápio: hoje ele aprende reiki, amanhã massagem ayurvédica, depois de amanhã experimentará alguma forma de xamanismo.

Tal indivíduo espiritualista não busca um caminho espiritual. Ele crê ser capaz de construir o próprio caminho, completamente livre de rótulos e padrões, com um pouco de tudo o que conseguir juntar.

Por experimentar diversas sendas, mas não se aprofundar em nenhuma; por viver experiências espirituais como “sensações” de um cardápio de sabores, sem uma base que lhes dê significado; por não ter uma cosmovisão sólida e consolidada, mas uma colcha de retalhos de cosmovisões tiradas completamente de seus contextos originais, o espiritualista segue tonto, sem um caminho definido e sem saber muito bem para onde vai. Ele tenta construir sua própria estrada para a “transcendência”, “próximo passo evolutivo” ou “despertar da consciência” sem fazer a menor ideia do que isso seja e sem dispor de ninguém que já tenha alcançado tal estado para lhe guiar. Esvaziadas de ethos, as práticas espiritualistas também são esvaziadas de espírito.

Ao querer abraçar tudo, o espiritualista crê ser capaz de se estender indefinidamente. Delimitar-se, para ele, significa limitar-se, estar preso a uma forma estática. Entretanto, ao se estender, o espiritualista agrava a sua perda de identidade, pois o pouco que lhe resta se dissolve numa realidade muito maior e mais poderosa. Delimitar-se, de fato, significa dar forma a um conteúdo bem definido. Significa dar contornos a uma identidade forte e bem construída.

Tanto o espiritualista quanto o extremista são resultados de uma crise espiritual resultante do enfraquecimento de sua relação com seu ethos. Essas pessoas buscam constantemente construir uma identidade própria, mas carecem dos referenciais mais básicos.

Sem saber de onde viemos, não conseguiremos ir a lugar algum. Sem uma identidade como base, não sabemos quem somos. Sem sabermos quem somos, nunca descobriremos quem podemos ser.

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