A Tradição não é uma Prisão
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Além das aptidões e das qualidades herdadas, é a tradição que faz de nós aquilo que somos.
Albert Einstein
No artigo A Perda de Identidade e a Crise no Espírito do Século XXI foram tecidas algumas considerações a respeito da perda identitária do homem ocidental e sua relação com o enfraquecimento do ethos
dos povos cristianizados. Perda identitária que, por sua vez, foi
intensificada pelo crescimento do materialismo e pelos apelos da
sociedade de consumo contemporânea. Mostraremos neste texto que a perda
identitária à que nos referimos reflete-se, também, na relação do homem
com o que mantém esse ethos, ou seja, a tradição.
Tradição e identidade estão intimamente
associadas, e a carência identitária de que falamos no artigo anterior
gera uma relação problemática com o conceito de tradição. Perdeu-se,
hoje, o sentido e o reconhecimento do que seja tradição, ao ponto de se
verificarem, com frequência, tanto um repúdio quanto uma banalização das
tradições em relação a suas complexidades e significados.
Etimologicamente, tradição vem do latim traditio, tradere,
significando literalmente “entregar”, “passar adiante”. Por definição,
tradição trata da continuidade ou permanência de uma doutrina, visão de
mundo, costumes e valores de um grupo social ou escola de pensamento,
por meio de sua transmissão oral ou escrita. Em outras palavras, ela
permite a continuidade ou permanência de um ethos.
O homem constrói sua identidade a partir de sua relação com o ethos
de seu grupo social. Essa relação se estabelece por meio da tradição.
Ao indivíduo são transmitidos os costumes, conhecimentos, visão de mundo
e valores do ethos pelas maneiras constituintes da tradição;
de forma escrita, por educação oral ou por participação nos costumes
executados de maneira tradicional. Muitas vezes sem perceber, o
indivíduo cria sua identidade a partir dos elementos tradicionais com
que se relaciona.
Nas religiões, tradição e ethos
encerram crenças, práticas e cosmovisões. Por sua constituição, ambos se
confundem. A diferença está em seu aspecto funcional: à primeira cabe
reproduzir e transmitir os aspectos do segundo. O ethos estabelece a identidade por trás da tradição, enquanto a tradição se torna a expressão do ethos.
Já foi comentado que a carência
identitária contemporânea tem levado a uma relação de consumo com a
espiritualidade. Os ditos espiritualistas experimentam diversas culturas
espirituais sem aprofundamento ou comprometimento; em suma,
apropriam-se de elementos tradicionais, mas ignoram a tradição.
Há os que concordem com essa postura
consumista, mostrando-se completamente avessos à ideia de tradição.
Posicionam-se como defensores de uma não tradição, ou seja, uma não
manutenção de um ethos, chegando ao ponto de entender a negação da tradição como a postura esperada de uma espiritualidade moderna.
Outros defendem a ideia de que o homem encontra-se acima
das tradições e, como tal, não deve ser escravo delas; cabe a qualquer
um fazer uso e juízo de uma tradição religiosa a partir de suas próprias
concepções, sem com ela estar comprometido. Essa é uma posição
egocêntrica, que coloca as percepções e raciocínios unilaterais de
alguém de fora do meio tradicional como referência satisfatória para
compreendê-lo.
Ambos, o rebelde e o egocêntrico, pensam
as tradições religiosas como algo engessado, limitado, circunscrito em
suas próprias práticas e encerrado em suas concepções. Que uma análise
superficial é o bastante, pois as tradições religiosas não passam de
meros quadros estáticos, cuja complexidade se resume ao número de
elementos representados: quanto mais complexa a tradição, mais elementos
presentes na tela.
Nada mais longe da verdade.
Nenhuma tradição religiosa se encontra em
um ambiente estático, todas sofrem as mais diversas influências. Para
efeito de estudo, podemos dividir essas influências em dois grupos
distintos: influências do espaço e influências do tempo.
Primeiro, uma religião normalmente
compartilha seu espaço com o de outras religiões. Um grupo social está
sujeito a interagir com outros grupos sociais, de conteúdos imateriais
distintos. Isso pode se dar de forma hostil ou natural, não importa,
pois sempre há trocas entre os conteúdos imateriais de grupos que se
relacionam, mesmo em conflito. Ethos dialoga com ethos.
Segundo, a tradição religiosa se
transforma no tempo, na medida em que os membros constituintes de seu
grupo também se transformam. Alguns membros vão saindo e outros tomam
seu lugar, com novas ideias e percepções. Membros antigos sofrem
transformações em suas visões, não sendo os mesmos que eram ao ingressar
na tradição. Ideias e visões se modificam no tempo.
Como pode, então, a tradição religiosa manter sua continuidade em um ambiente tão dinâmico?
Mantendo-se como um processo em constante
renovação, sem perder os fundamentos que definem a sua identidade. A
cada momento, tradição e ethos se reciclam, conservando os mesmos princípios, mas mudando abordagens e refinando conceitos.
Uma coisa importante a se apontar é: nem
quando estão em contato umas com as outras as tradições perdem os
aspectos fundamentais de seu ethos. Um budista, por exemplo, pode entrar em contato com os Deuses helenos e até aceitar alguns deles em seu corpus
religioso, mas sua visão sobre esses Deuses será budista, não helena.
Muitos candomblecistas frequentam missas e, antigamente, era comum ao yawo recém-iniciado
tomar a comunhão logo após a conclusão de seus processos iniciáticos.
Este ato, no entanto, não transformava a sua cosmovisão na de um
católico. Uma cosmovisão religiosa bem constituída possui subsídios
suficientes para lidar com o mundo em sua diversidade.
Torna-se claro que adquirir conhecimento
substancial de algo não apenas complexo e profundo, mas também vivo e em
constante mutação, é um desafio permanente. De fato, tradições
religiosas são universos em si mesmas, com conteúdos que preencheriam
uma vida inteira de experiências e estudos.
Se um integrante de uma tradição
religiosa necessita de uma vida para reunir conhecimento substancial
sobre o que pratica e vivencia, completamente imerso naquele ethos,
como supor que um observador externo possa se outorgar o título de
conhecedor profundo de algo em que nunca tocou mais que a superfície? Ou
pior, que seja possível superar o conhecimento daqueles que vivenciam a
tradição e atuam nela/a partir dela?
Não há como apreender o conteúdo de uma
tradição religiosa de maneira substancial e satisfatória sem nela estar
imerso, sem experimentá-la na própria vida, sem compartilhar
experiências com os que a vivenciam. Uma abordagem acadêmica é,
obviamente, possível. Mas sempre será uma visão dada a partir de modelos
e métodos próprios – uma abordagem lateral e incompleta, pois falta a
ela a perspectiva de dentro.
Pertencer a uma tradição religiosa é
dispor de uma lente para enxergar o espiritual aparentemente difuso e
misterioso. É ter subsídios para ver o que lhe cerca e entender como
tais coisas interagem e fazem sentido. É reconhecer que há, na
espiritualidade do mundo, uma estrutura coerente. Tal trabalho demandou
vidas para ser realizado e permanece em constante desenvolvimento, precisando também de muito tempo para ser plenamente compreendido.
Um religioso bem consciente e que não
opte por uma vida de reclusão não vê problemas em partir para o mundo e
vivenciar o que ele pode proporcionar. Por mais que andem pelos mais
diferentes lugares, tendo contato com as mais diversas formas de se
pensar e agir, as pessoas que se identificam com uma tradição religiosa
podem aprender, apreender e lidar com essa diversidade sem perder,
dentro de si mesmas, a consciência do que e de quem são.