A Tradição não é uma Prisão

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Por Fábio Firmino, publicado originalmente em Athenaion.
Republicado com autorização do autor.

Além das aptidões e das qualidades herdadas, é a tradição que faz de nós aquilo que somos.
Albert Einstein

No artigo A Perda de Identidade e a Crise no Espírito do Século XXI foram tecidas algumas considerações a respeito da perda identitária do homem ocidental e sua relação com o enfraquecimento do ethos dos povos cristianizados. Perda identitária que, por sua vez, foi intensificada pelo crescimento do materialismo e pelos apelos da sociedade de consumo contemporânea. Mostraremos neste texto que a perda identitária à que nos referimos reflete-se, também, na relação do homem com o que mantém esse ethos, ou seja, a tradição. 

Tradição e identidade estão intimamente associadas, e a carência identitária de que falamos no artigo anterior gera uma relação problemática com o conceito de tradição. Perdeu-se, hoje, o sentido e o reconhecimento do que seja tradição, ao ponto de se verificarem, com frequência, tanto um repúdio quanto uma banalização das tradições em relação a suas complexidades e significados.

Etimologicamente, tradição vem do latim traditio, tradere, significando literalmente “entregar”, “passar adiante”. Por definição, tradição trata da continuidade ou permanência de uma doutrina, visão de mundo, costumes e valores de um grupo social ou escola de pensamento, por meio de sua transmissão oral ou escrita. Em outras palavras, ela permite a continuidade ou permanência de um ethos.

O homem constrói sua identidade a partir de sua relação com o ethos de seu grupo social. Essa relação se estabelece por meio da tradição. Ao indivíduo são transmitidos os costumes, conhecimentos, visão de mundo e valores do ethos pelas maneiras constituintes da tradição; de forma escrita, por educação oral ou por participação nos costumes executados de maneira tradicional. Muitas vezes sem perceber, o indivíduo cria sua identidade a partir dos elementos tradicionais com que se relaciona.

Nas religiões, tradição e ethos encerram crenças, práticas e cosmovisões. Por sua constituição, ambos se confundem. A diferença está em seu aspecto funcional: à primeira cabe reproduzir e transmitir os aspectos do segundo. O ethos estabelece a identidade por trás da tradição, enquanto a tradição se torna a expressão do ethos.

Já foi comentado que a carência identitária contemporânea tem levado a uma relação de consumo com a espiritualidade. Os ditos espiritualistas experimentam diversas culturas espirituais sem aprofundamento ou comprometimento; em suma, apropriam-se de elementos tradicionais, mas ignoram a tradição.

Há os que concordem com essa postura consumista, mostrando-se completamente avessos à ideia de tradição. Posicionam-se como defensores de uma não tradição, ou seja, uma não manutenção de um ethos, chegando ao ponto de entender a negação da tradição como a postura esperada de uma espiritualidade moderna.

Outros defendem a ideia de que o homem encontra-se acima das tradições e, como tal, não deve ser escravo delas; cabe a qualquer um fazer uso e juízo de uma tradição religiosa a partir de suas próprias concepções, sem com ela estar comprometido. Essa é uma posição egocêntrica, que coloca as percepções e raciocínios unilaterais de alguém de fora do meio tradicional como referência satisfatória para compreendê-lo.

Ambos, o rebelde e o egocêntrico, pensam as tradições religiosas como algo engessado, limitado, circunscrito em suas próprias práticas e encerrado em suas concepções. Que uma análise superficial é o bastante, pois as tradições religiosas não passam de meros quadros estáticos, cuja complexidade se resume ao número de elementos representados: quanto mais complexa a tradição, mais elementos presentes na tela.

Nada mais longe da verdade.

Nenhuma tradição religiosa se encontra em um ambiente estático, todas sofrem as mais diversas influências. Para efeito de estudo, podemos dividir essas influências em dois grupos distintos: influências do espaço e influências do tempo.

Primeiro, uma religião normalmente compartilha seu espaço com o de outras religiões. Um grupo social está sujeito a interagir com outros grupos sociais, de conteúdos imateriais distintos. Isso pode se dar de forma hostil ou natural, não importa, pois sempre há trocas entre os conteúdos imateriais de grupos que se relacionam, mesmo em conflito. Ethos dialoga com ethos.

Segundo, a tradição religiosa se transforma no tempo, na medida em que os membros constituintes de seu grupo também se transformam. Alguns membros vão saindo e outros tomam seu lugar, com novas ideias e percepções. Membros antigos sofrem transformações em suas visões, não sendo os mesmos que eram ao ingressar na tradição. Ideias e visões se modificam no tempo.

Como pode, então, a tradição religiosa manter sua continuidade em um ambiente tão dinâmico?

Mantendo-se como um processo em constante renovação, sem perder os fundamentos que definem a sua identidade. A cada momento, tradição e ethos se reciclam, conservando os mesmos princípios, mas mudando abordagens e refinando conceitos.

Uma coisa importante a se apontar é: nem quando estão em contato umas com as outras as tradições perdem os aspectos fundamentais de seu ethos. Um budista, por exemplo, pode entrar em contato com os Deuses helenos e até aceitar alguns deles em seu corpus religioso, mas sua visão sobre esses Deuses será budista, não helena. Muitos candomblecistas frequentam missas e, antigamente, era comum ao yawo recém-iniciado tomar a comunhão logo após a conclusão de seus processos iniciáticos. Este ato, no entanto, não transformava a sua cosmovisão na de um católico. Uma cosmovisão religiosa bem constituída possui subsídios suficientes para lidar com o mundo em sua diversidade.

Torna-se claro que adquirir conhecimento substancial de algo não apenas complexo e profundo, mas também vivo e em constante mutação, é um desafio permanente. De fato, tradições religiosas são universos em si mesmas, com conteúdos que preencheriam uma vida inteira de experiências e estudos.

Se um integrante de uma tradição religiosa necessita de uma vida para reunir conhecimento substancial sobre o que pratica e vivencia, completamente imerso naquele ethos, como supor que um observador externo possa se outorgar o título de conhecedor profundo de algo em que nunca tocou mais que a superfície? Ou pior, que seja possível superar o conhecimento daqueles que vivenciam a tradição e atuam nela/a partir dela?

Não há como apreender o conteúdo de uma tradição religiosa de maneira substancial e satisfatória sem nela estar imerso, sem experimentá-la na própria vida, sem compartilhar experiências com os que a vivenciam. Uma abordagem acadêmica é, obviamente, possível. Mas sempre será uma visão dada a partir de modelos e métodos próprios – uma abordagem lateral e incompleta, pois falta a ela a perspectiva de dentro.

Pertencer a uma tradição religiosa é dispor de uma lente para enxergar o espiritual aparentemente difuso e misterioso. É ter subsídios para ver o que lhe cerca e entender como tais coisas interagem e fazem sentido. É reconhecer que há, na espiritualidade do mundo, uma estrutura coerente. Tal trabalho demandou vidas para ser realizado e permanece em constante desenvolvimento, precisando também de muito tempo para ser plenamente compreendido.

Um religioso bem consciente e que não opte por uma vida de reclusão não vê problemas em partir para o mundo e vivenciar o que ele pode proporcionar. Por mais que andem pelos mais diferentes lugares, tendo contato com as mais diversas formas de se pensar e agir, as pessoas que se identificam com uma tradição religiosa podem aprender, apreender e lidar com essa diversidade sem perder, dentro de si mesmas, a consciência do que e de quem são.

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