Crime e Butan Ǣ

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Introdução

O motivo de existência de um cynn é o estabelecimento de um laço de friþ entre seus membros e a comunidade humana exterior, as comunidades de wihta ēse. Todavia, esse estado de friþ pode infelizmente ser quebrado pela não observação do correto þēaw, e terminar gerando desarmonia, intrigas internas etc. O crime e a ofensa eram literalmente entendidos como uma "quebra de friþ" (friþbryċe).

Tanto hoje como no passado as comunidades humanas desenvolvem técnicas para lidar com tais situações, e restaurar mais uma vez a friþ. Obviamente as soluções variariam de acordo com a gravidade da ofensa ou crime cometido contra terceiros por um determinado indivíduo. As penalidades variariam de acordo com o que foi feito, e assim a friþ poderia ser recuperada.

Nos tempos antigos do direito inglês, o crime não era em primeira instância feito contra uma entidade abstrata como um estado em sua forma institucional ou personificada no representante máximo (naquele caso, o cyning) mas ao grupo de parentes, o cynn. Cabia ao cynn o dever de executar a justiça, e não ao aparato legal, em um primeiro momento [1].

Juramento, Wergild e bōt

O direito anglo-saxão era altamente baseado em duas principais noções: a palavra dita e a compensação financeira. Isso quer dizer que caso uma parte trouxesse uma acusação pública contra outra numa ġemōt, as principais maneiras de se resolver o caso seriam: (1) a parte acusada, se tiver reputação boa o suficiente para isso, pode pronunciar um juramento que a torne inocente da acusação, ou, a depender de sua reputação ou gravidade do caso, trazer mais testemunhas, entre uma e vinte, para jurar a sua inocência; (2) caso a culpa seja irrefutável, a parte acusada precisa pagar uma indenização em dinheiro para o acusador, que poderia ser chamada de bōt, wit ou wergild. Em ambos os casos a causa deveria ser resolvida, caso não fosse grave o suficiente para receber pena maior.

Existiam outros tipos de punição que envolviam tanto mutilação quanto obrigação de pagamento com a própria liberdade. Por serem medidas demasiado extremas e incompatíveis com o direito moderno em que vivemos, deixaremos sua análise de lado.

Um bōt literalmente significa uma "reparação" e em termos não legais também pode significar reparação da saúde ou mesmo da terra [2]. É o termo mais comum para indenizações financeiras nos códigos legais anglo-saxões e é a resposta imediata para resolver a maioria dos problemas. Seria paga por um réu para a parte injuriada, como forma de reestabelecer a friþ. Nas leis eram estipulados os valores dos crimes mais comuns para se evitar abuso de qualquer uma das partes. Todavia, algumas das mais altas ofensas na sociedade anglo-saxã não poderiam ser pagas com um bōt, elas eram "bōtleas" [1]. A segunda palavra, wit, é um bōt pago especialmente para um dos eoldermen ou witan.

Já o terceiro termo, wergild, é um tanto mais complexo. Assim como o bōt e o wit o wergild era uma forma de indenização paga em geral por um ofensor. Todavia, o wergild era associado diretamente a um tipo de acusação: o assassinato. Em linguagem direta, o wergild é o valor estipulado nas leis de acordo com o título de cada pessoa para um acusado de assassinato pagar para o cynn da vítima. O objetivo era, assim, evitar prolongados e infrutíferos feudos como os que vemos ainda no século XI na Islândia [1]. Todavia, o wergild também poderia ser pago como forma de "recomprar" a própria vida, caso um acusado enfrentasse uma acusação muito séria, ele poderia dar o valor do próprio wergild para encerrar a disputa e restaurar a friþ.

Os códigos antigos, desde o primeiro escrito na Inglaterra, o do juto Æþelbirht, possuem longas listas de leis versando minuciosamente sobre quantos xelins deveriam ser pagos por todo o tipo de injúrias físicas e furto [3]. É essencial se notar, todavia, que tanto wergild quanto bōt referiam-se mais corretamente a problemas causados por uma pessoa de fora do cynn ao grupo nos tempos anglo-saxões; no caso do Fyrnsidu moderno a questão volta-se, ao contrário, mais comumente para dentro do cynn, uma vez que parece improvável que alguém da sociedade global vá entender ou querer reparar suas injúrias segundo o costume dos heathens (pelo menos até que o número e proximidade de grupos de heathens sejam maiores e eles possam exercer entre si seus costumes).

Butan ǣ

Apesar da forma de pagamento judicial para os anglo-saxões ser essencialmente o dinheiro, isso não cobria todos os crimes, em especial os de natureza menos aceitas dentro do þēaw. Para causas não passíveis de resolução através de pronunciamento de juramentos ou pagamento de indenizações, punições maiores eram estipuladas, como a expulsão do acusado do grupo social. Tal expulsão poderia ter um período determinado ou ser perpétua. Em todo o caso, qualquer pessoa que ajudasse alguém em tal condição era considerado igualmente fora da lei.

Butan ǣ (estar sem lei) e adrifen (banir), são as palavras nativas anglo-saxãs para as normas sociais estabelecidas para a expulsão de alguém de um grupo sócio-político, como um burh (área fortificada), um cyningdom (território sob um cyning) ou cynn (grupo de parentes ou nação) e sua respectiva proteção legal. Mais tarde, no final do século X, os termos de origem nórdica ūtlagu, ūtlagaria, que dão origem inglês moderno "outlawry" tornariam-se mais comuns sem todavia expulsar os vocábulos nativos totalmente de uso [4]. Esse é um conceito antigo entre os povos germânicos: em grupos sociais onde a vida era orientada pelo auxílio do cynn estar fora dele significava a morte, e não das melhores formas.

Apesar da certa antiguidade do costume, ele só aparece em escritos em 786, num documento conhecido como Legatine Capitulary, na frase utroque iure caruerunt ("e eles foram privados de ambas as leis", isto é, a lei secular e religiosa), e não torna aparecer antes de 880 nos códigos legais do cyning Ælfrēd. O primeiro caso registrado de um flieman é Helmstān, num documento datado somente entre 900 e 924, o que complica nosso entendimento pré-cristão do conceito [4].

A penalidade anglo-saxã de butan ǣ acontecia quando uma pessoa criminal era tornada um indivíduo, porém nesse caso individualização significava ser despido de todas as formas de proteção legal, não como resultado de ter escapado da justiça, tornando-se assim um fugitivo, como em nossa sociedade, mas porque a justiça causou sua fuga, uma vez que todas as medidas que penalizariam atos de violência contra ele, mesmo seu assassinato, ou necessidade de feudo por parte do seu cynn, teriam sido suspensas [4].

Ser posto para fora das "duas leis", isto é, tanto da proteção da lei secular quanto da lei religiosa, trazia implicações que retrocedem ao tempo pagão: as igrejas, como os antigos bosques, templos e monumentos sagrados pagãos, eram um friþġeard, isto é, um recinto delimitado onde nenhuma violência de qualquer tipo ou mesmo o porte de armas era permitido, servindo também como abrigo para todos que ali procurassem. Todos menos, digamos, quem tivesse sido alvo de butan ǣ: um sem lei.

Tal medida era inicialmente uma declaração de guerra pela sociedade (commonwealth) contra um membro ofensor, e tornou-se um meio regular de compelir submissão a autoridade da ġemōt. Nos procedimentos criminais, entretanto, a expulsão foi usada próxima do tempo de Ælfrēd como uma penalidade substantiva contra procedimentos legais ou recorrente desobendiência da ġemōt [1]. Pessoas acusadas repetidas vezes (especialmente por furto) eram consideradas tanto indignas de juramentos quanto em condição de butan ǣ. Uma pessoa com má reputação entre vizinhos e parentes já era meio condenada, e fugir dos julgamentos era admissão de culpa. Em comunidades onde honestidade era ainda razoavelmente confiável, tal recurso provavelmente não causava injustiça [1]. Outros crimes que comumente podiam ser condenados com butan ǣ eram assalto, assassinato, injúrias físicas, traição (em especial a um hlaford) e furto.

Um sem lei ou fora da lei podia ser designado em inglês antigo como fliema, flyma (que também significava "fugitivo"), afliemed, e tardiamente ūtlah e wearg, wearh (vargr em nórdico antigo designa tanto um fora-da-lei quanto um lobo) os quais entram no vocabulário anglo-saxão por influência nórdica [4]. Essa associação de pessoas expulsas da sociedade com lobos não deve ser algo estritamente nórdico, uma vez que as Máximas I (Maxims I) nos dizem que wineleas, wonsælig mon genimeð him wulfas to geferan, felafæcne deor, isto é, "sem amigos, um homem miserável tomará lobos como amigos, animais muito traiçoeiros". Freondleas (friendless, "sem amigos"), é, de fato, um dos termos usados nos códigos legais anglo-saxões para uma pessoa que foi expulsa da sociedade [3] e é idêntico em forma a wineleas usado pelo sċop (poeta) das Máximas I.

A condição de butan ǣ deixava assim um ofensor sem condições de se defender de qualquer retaliação, perdendo direito à sua propriedade, e todos aqueles que o ajudassem seriam considerados butan ǣ, embora o próprio cynn pudesse de antemão apartar-se de um ofensor, o que era 60% do caminho para ser colocado em  condição de expulsão total [1].

Uma das causas mais comuns para se invocar a instituição de butan ǣ era o assassinato. O feudo só era permitido na sociedade anglo-saxã caso a parte ofensora se negasse a resolver a questão de forma pacífica (isto é, pela compensação financeira), e caso a parte ofendida não pudesse levar a justiça a cabo. A execução de quem tinha sido colocado na condição de butan ǣ caberia então a instâncias superiores, como ealdormen ou o cyning, e de fato, ser considerado inimigo do cyning, perder a friþ dele, era a forma mais grave de butan ǣ [1].

Como o assassinato é um crime que pertence ao estado legislar nos dias atuais, e, sobretudo, é uma situação extrema a qual não pretende-se que aconteça dentro de um grupo de praticantes de Fyrnsidu, é desnecessário versar muito sobre suas consequências, servindo apenas de exemplo de pena máxima histórica para aprofundar nosso entendimento do modo de pensar heathen.

Após analisar as implicações históricas envolvidas com a quebra de friþ na sociedade anglo-saxã, e em que condições a punição de butan ǣ ocorria, vamos agora passar para utilização prática e como isso pode ser usada por um cynn de praticantes de Fyrnsidu na atualidade.

Conclusões e reconstrução
Baseado no acima exposto, podemos reconstruir o conceito de butan ǣ da seguinte forma para ser usado no Fyrnsidu moderno:
  1. Antes de mais nada, feudos que envolvem assassinato de um flyma (fora-da-lei) devem ser totalmente proibidos, uma vez que os sistemas legais dos estados atuais consideram isso um crime. Violência, sempre que possível, também deve ser evitada. Na atualidade, justiça, a nível legal, deve ser feito pelo estado e não pelo cynn. Esse é um aspecto com que temos que irremediavelmente lidar.
  2. A questão de butan ǣ nos dias atuais deve ser mais pautada para facilitar nossa compreensão do þēaw esperado de cada um e todos os membros de um cynn, no entendimento de que aquilo que é yfel (desestabilizador da friþ, a harmonia interna), deve ser expressamente evitado e punível com por o agressor na condição de butan ǣ.
  3. Butan ǣ, nos dias atuais, deve mais corretamente significar estar fora da ǣ do cynn, isto é, perder os benefícios do cynn, sua amizade, sua proteção, e todos os direitos dentro do grupo, como obrigação de hospitalidade, direito a compartilhar da friþ do grupo.
  4. Caso seja de interesse das partes ofendidas, o ofensor pode (a exemplo do wergild e do bōt) concordar com elas uma forma de pagamento (em presentes ou mesmo dinheiro) para cessar a questão. Isso vai depender, obviamente, do quão grave foi a questão e se o cynn como um todo pensa ser viável tal reparação.
  5. As questões internas que têm causado problemas dentro do cynn devem ser resolvidas através da ġemōt (assembleia), idealmente com (a) proferimento de juramentos por parte do acusado, se ele for digno disso, o inocentando, ou (b) pagamento de uma indenização. Fica evidente que a indenização só deve ser aceita se o cynn por bem decidir que o acusado ainda possa fazer parte deles. Em outros casos, o butan ǣ é aconselhado para que a friþ possa ser reestabelecida.
  6. Em casos menos graves, a pena pode ser provisória, durando meses ou anos, em casos de gravidade extrema ela pode ser permanente.
  7. Uma pessoa na condição de butan ǣ não pode buscar refúgio nem permanecer em espaços sagrados (friþġeardas).
  8. Membros do cynn que ofereçam ajuda a uma pessoa em butan ǣ também são colocadas para fora da lei do cynn.
  9. A medida deve preferencialmente ser decidida em consenso, através de ġemōt. Seu propósito deve ser unir os membros restantes, não os separar.
  10. Fica evidente disso que butan ǣ é uma punição capital e por sua própria natureza deve ser evitada sempre que possível. Mais uma vez, ela deve ter uma função muito mais simbólica, isto é, apresentando para o cynn a atitude que não se espera de seus membros e qual é a consequência do que uma medida a ser usada a bel prazer.

REFERÊNCIAS
[1] Frederick Pollock, 1893. Anglo-Saxon Law. In: The English Historical Review, Vol. 8, No. 30 (Apr., 1893), pp. 239-271
[2] Toller, T. Northcote and Bosworth, Joseph, 1921. An Anglo-Saxon Dictionary.
[3] Thorpe, Benjamin et al. 1840. Ancient Laws and Institutes of England.
[4] Carella, Bryan, 2015. The earliest expression for outlawry in Anglo-Saxon law.

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