Rūne

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Runas: Os mistérios e os conselhos do deus enforcado na árvore




Por Daniel Seaxdēor, com colaboração de Ravn
Como homenagem ao Andarilho Cinzento que propicia compreensão àqueles que estiverem dispostos a entender suas antigas runas, que falam sobre a vida, honra, coragem, glória e a morte.

As palavras são chaves que abrem conceitos, ideias, entendimentos. Entender a origem e evolução de uma palavra ajuda a compreender mais profunda e corretamente o que uma coisa significou ou significa em determinada cultura. Muitas vezes ideias que superficialmente parecem compreensíveis em si mesmas, aprofundando-se em sua história, revelam nuances inimagináveis que nos aproximam do acesso a um mistério, uma sabedoria, um conselho ancestral, uma runa.

*Rūnō e seus derivados

Mas, o que seria uma “runa”? Em boa parte dos idiomas germânicos atestados a palavra surge, vinda do proto-germânico *rūnō, o qual significa “segredo, mistério”, a partir do qual se deriva o segundo significado, como “letra, caractere do alfabeto rúnico germânico”. O termo tem origem no proto-indo-europeu *rēwH-, que significa “rugir, resmungar, murmurar, sussurrar” e tem uma possível origem como uma onomatopeia, ou seja, imitação de som natural não-verbal. Compare com o latim rūmor, que além do significado como “rumor” carrega a maioria das mesmas conotações do termo proto-indo-europeu com o qual tem uma origem em comum com o termo *rūnō proto-germânico.

Nos idiomas germânicos, *rūnō deu origem ao termo gótico rúna, “conselho, mistério”; o saxão antigo rúna, “conselho, conferência”; o alto-alemão antigo rûna, “sussurro, mistério, letra”. Todavia, os sentidos dos derivados de *rūnō parecem sempre mais associados, primeiramente, a mistério, e só então a algum tipo de símbolo gráfico, geralmente entalhado, nos tempos pagãos. Isso fica mais evidente analisando os derivados de *rūnō nos dois idiomas germânicos mais bem preservados: nórdico antigo e inglês antigo.

Em nórdico antigo, segundo o dicionário Zoega, rúnar, no plural, significa “segredo, conhecimento/tradição/história (lore) oculta, sabedoria”, ou “caracteres escritos” os quais poderiam ser mágicos ou não. A palavra, no singular, refere-se a uma “amiga íntima” e não a uma letra ou caractere rúnico. O dicionário apresenta o verso of rúnar heyrða ek dœma (Hávamál 111, escrito por volta do século XIII) como “eu os ouvi falar de mistérios” e ainda cita a expressão jǫtna rúnar como “mistérios dos gigantes”.

Em inglês antigo, segundo o dicionário Bosworth-Toller, rūn é um “sussurro”, uma “fala que não pretende-se que seja ouvida”, uma “confidência, conselho, consulta”, mas também um “mistério segredo” ou “algo que foi escrito”, com ideia de mistério ou magia, e então “um caractere rúnico, uma letra”. A palavra foi usada em vários contextos que seriam inusitados, tendo invadido mesmo o cristianismo. No poema Bēowulf, a expressão ġesittan tō rūne (verso 346) significa “sentar-se em conselho”. Em Elene, no Codex Vercellencis encontramos dryhtnes word, hāliġe rūne, que significa “a palavra do senhor (o deus cristão), o sagrado mistério”. No Versus gnomici, parte do Codex Exoniensis (século X), encontramos rūne healdan, “manter o conselho/segredo de alguém”.

Como verbo, encontramos na Gramática de Ælfric, a expressão rūniġe, “eu sussurro”. Rūnian significa apenas “falar baixo, sussurrar”. Rūnliċ é “místico, secretamente, silenciosamente”. Rūne ainda aparece em outros compostos: no kenning poético rūncofa, “a câmara de um conselho secreto”, ou seja, “mente, peito (como local onde está o coração)”: hē mæg on his rūncofan rihtwīsnesse findan, ou  “ele pode em sua câmara da sabedoria (isto é, em sua mente ou coração) encontrar a justiça”, encontrada na tradução de Boethius de Consolatione Philosophiae pelo rei Ælfrēd, o Grande para o inglês antigo. Há ainda o composto rūncræftiġ, “habilidoso em explicar mistérios”, no poema Daniel. Já rūnung é uma “fala secreta”, como encontrado em uma antiga homilia anglo-saxã: Hī nāmon þone sceatt and swāþēah mūþetton and on synderlicum rūnungum þæt riht eall rǣddon, “em segredo, eles (o guardiões do sepulcro de Jesus) presumiram qual era a verdade”.

Voltando a Bēowulf, encontramos o composto mais interessante e que  requer uma melhor atenção: rūnwita. No poema encontramos:
[…] Dēad is Æschere,
Yrmenlāfes yldra brōþor,
mīn rūnwita ond mīn rǣdbora,
Eaxlgestealla
[…] (versos 1323-1326).
(“Æschere está morto, o irmão mais velho de Yrmenlāf, meu sábio em conselhos e aquele que me traz recomendações, o companheiro de ombro…”).
Já na Lenda de São Guthlac, no Codex Exoniensis encontramos a expressão rōf rūnwita, “valoroso conselheiro”. Esse uso da palavra rūn e seus compostos e derivados em inglês antigo ecoa com o uso de termos cognatos (isto é, com uma origem comum) no saxão antigo. Logo no começo do poema Heliand (escrito na primeira metade do século IX), encontramos:
Manega uuâron, the sia iro môd gespôn,
that sia bigunnun uuord godes,
reckean that girûni, that thie rîceo Crist
undar mancunnea mâriða gifrumida
mid uuordun end mid uuercun.
[…] (versos 1-5)
(Muitos foram, os que as suas mentes pediram, que eles comecem a considerar a palavra de deus/a boa palavra, os mistérios, de que o poderoso Cristo sob a humanidade realizou milagres com palavras e com obras).
Já no verso 1595 encontramos gerihti ûs that gerûni, “nos ensine estes mistérios/sabedoria/segredos”.

Existem abundantes menções de descendentes do termo proto-germânico *rūnō principalmente no idioma dos anglo-saxões, que em sua totalidade refletem algum dos significados mencionados até aqui.

*Stabaz e seus derivados

A segunda ideia geral associada às letras rúnicas é a que vem do proto-germânico *stabaz. Esse termo originariamente significa algo como “pau, galho, vareta, cajado”. Dá origem à diversos termos, que veremos mais detalhadamente:

Em nórdico antigo, stafr é um “cajado, poste em um prédio”, veja-se a expressão ganga við staf, “andar com cajado”, ou uma “letra escrita, sinal”. No plural, stafir é “sabedoria, conhecimento, tradição (lore), sabedoria”, veja-se o termo fornir stafir, “antiga tradição”, “antigas coisas que se dizia”. Staf aparece em compostos como stafróf, “alfabeto”, stafanǫfn, “nomes de letras”, stafsetning, “arranjo das letras”, stafaskipti, transposição de letras, stafasnúning, “metátese (troca de lugares de fonemas ou sílabas dentro de uma palavra)”.

Em inglês antigo stæf possui basicamente as mesmas conotações do termo stáfr dos nórdicos. Em sua Gramática, Ælfric diz que littera is stæf on Englisc. Essa passagem é muito importante, pois littera é a palavra latina para “letra”, e Ælfric expressa que, em inglês antigo, stæf — e não rūn — é seu equivalente. Compostos como stæfcræft, “gramática, aprendizado”, stæfwīs, “letrado, sábio em letras” sempre apontam, como em nórdico antigo, ou para algo relacionado com letras ou então com madeira, cajados, gravetos.

Cabe lembrar aqui que os germânicos usavam primariamente dois materiais para escrita: a pedra, em construções permanentes como túmulos, e galhos de madeira, de forma similar a que usamos o papel, para carregar mensagens. A associação de letras e galhos ainda é vista até hoje, por exemplo, no alto-alemão moderno, na palavra Buchstabe, ou, numa grosseira tradução literal, “graveto-do-livro”, que significa “letra”, e invoca a associação da escrita antiga em galhos ou o seu formato reto, ou ambas as coisas.

Todavia, existe um composto mais que interessante: rúnstafir, em nórdico antigo, e rūnstæf em inglês antigo. Ambos significam “runa, letra rúnica”. Isso reforça a definição de rún ou rūn como literalmente um “conselho, conhecimento, mistério, segredo, sabedoria” uma vez que o composto significaria assim “galho da sabedoria”, “galho do mistério”, o qual funciona como um kenning poético perfeito para “letra”.

A dialética de rúnar e stafir no Hávamál

No Codex Regius, do século XIII, foi preservado um dos poemas mais conhecidos entre os heathens e outros pagãos germânicos: o Hávamál, escrito em nórdico antigo, é um compêndio de vários poemas diferentes agrupados em conjunto, e sua temática central são conselhos do deus Óðinn. Vamos analisar alguns dos seus versos onde rúnar e stafir são mencionados, comparando seus significados e usos, tendo em mente a discussão feita até aqui. As traduções são de minha autoria, feitas literalmente para se destacar o imaginário e lógica do pensamento do autor original, e então será feita a discussão dos significados.

A primeira menção de rúnar é a já mencionada
 of rúnar heyrða ek dœma (estrofe 111)
(sobre mistérios eu ouvi julgar (refletir, considerar)).
Nesta passagem, que é o começo da quarta parte, o Loddfáfnismál, nós temos uma espécie de introdução no que virá a seguir: Óðinn apresenta sua fonte de autoridade (seu trono), localizado na fonte do destino (Fonte de Urðr), e atesta que as rúnar são uma espécie de conhecimento sobre o qual ele muito ponderou e deu seu julgamento. Na tradução de Medeiros, encontramos “runa” ou caractere rúnico, embora pareça um pouco mais prudente se pensar que rúnar ali possua seu significado mais primordial de “mistério, segredo, bom conselho, sabedoria divina”. Óðinn apresenta-se como possuidor do mistério ancestral dos germânicos, o qual ele irá falar para Loddfáfnir. Uma tradução como caracteres rúnicos poderia ser usada, mas, dado o contexto, é de se crer que ele se refira à sabedoria falada, não a escrita.

Partimos então para
annars konu
teygðu þér aldregi
eyrarúnu at
(estrofe 115).
(a mulher de outro nunca seduza para [ser] segredo de orelha (amante) para si).
Nessa passagem encontramos novamente a palavra rúna, mas no singular. Esta é claramente uma menção a algo que não são as rúnar, os caracteres escritos. Em inglês, o kenning poderia ser facilmente renderizado como ear-rune (runa de orelha), rune aqui como algo que não se conta abertamente, ou ear-secret (segredo de orelha), demonstrando que nem sempre um segredo possuía um caráter de associação com o saber ancestral, mas como algo que é mantido longe do conhecimento geral, embora ainda nada religioso: uma relação extraconjugal. Seduzir a mulher de outro homem para si, relacionar-se com ela como um “segredo íntimo”, próximo o suficiente para ou estar à orelha, ou apenas se mencionar aos sussurros, é algo que não pode acontecer de forma aberta sem causar encargos e feudos de honra, um “golpe baixo” no código de ética germânico.
[…] góðan mann
teygðu þér at gamanrúnum
ok nem líknargaldr meðan þú lifir
(estrofe 120)
(conquiste para si com jogos de palavras (charadas) um bom homem e aprenda encantamentos de ajuda durante sua vida).
Aqui encontramos a primeira situação mais complexa do uso do termo rúnar. “Um bom homem” é o que se visa obter com o uso de gamanrúnar, e em seguida são mencionados os líknargaldr onde galdrar podem ser “encantamentos” ou “magia”. O texto então parece trabalhar um dúbio sentido para rúnar, embora um dos sentidos pareça ser mais proeminente: o de charadas, ficando a magia em segundo lugar, embora não descartada.

Gaman é cognato do termo inglês antigo gamen, e ambos significam “alegria, prazer, regozijo, esporte, passatempo”, o qual deu origem ao inglês moderno game. Em inglês antigo, no Codex Exoniensis ou, como é mais conhecido, Livro de Exeter do século XI, encontramos dezenas de charadas (riddles), jogos de adivinhações onde o interlocutor é convidado a pensar no significado do enigma proposto de forma poética e dizer ao que ele se refere. Gamanrúnar então pode ser sugestivo de se conquistar a amizade de uma boa pessoa através de brincadeiras, enigmas, e isso não seria uma oposição às traduções que comumente sugerem “palavras alegres” ou “palavras agradáveis”, mas um aprofundamento do significado disso, uma vez que essa era uma forma de diversão da época.

Todavia, a existência de líknagaldr ou “feitiços, encantamentos, magia de ajuda” também ecoa com manuscritos ingleses antigos como o Lacnunga (Remédios) e o Medicinale Anglicum (Medicina dos Ingleses), também conhecido como Livro de Cura Natural de Bald. Nesses manuscritos encontramos diversos encantamentos que eram de uso corrente no período inicial da história anglo-saxã antes da entrada da medicina mais próxima das tradições mediterrâneas se expandir. Neles soluções naturais são usadas lado a lado com invocações religiosas tanto pagãs quanto cristãs, e isso pode sugerir que gamanrúnar eram feitiços ou encantamentos de natureza benévola, os quais poderiam ser usados para atrair a amizade de alguém. Creio, todavia, que o texto possa tratar ambos os significados, como “charada” e “encantamento”, tornando o conselho ali dado mais complexo e multifacetado, lidando com ambiguidades próprias do idioma nórdico antigo e a cultura germânica onde se insere.

Veja-se, todavia, a segunda aparição de gamanrúnar:
ef þú vilt þér góða konu kveðja at gamanrúnum
ok fá fǫgnuð af  fǫgru skaltu heita
ok láta fast vera  leiðisk manngi gott ef getr
(estrofe 130)
(se você deseja atrair para si uma boa mulher com charadas e conseguir seu prazer, faça um justo juramento e permaneça ligado a ele, nenhum homem se cansa do que é bom quando o obtém).
Novamente aqui lidamos com uma grande ambiguidade no uso do termo gamanrúnar. O sentido relacionado à magia de gamanrúnar como “caracteres rúnicos para a alegria”, ou seja, um encantamento escrito, não se encaixa com todo o conselho dado por Óðinn: se esse fosse o sentido principal, um juramento seria desnecessário, e a fidelidade ao juramento, aparentemente, embora magia e ação comumente andassem interligadas, uma selando a outra, como uma série de medidas em diferentes esferas para se garantir o sucesso de um intento.

Uma possível ideia seria gamanrúnar como um discurso alegre, palavras ditas para se conquistar a mulher, as quais seriam complementadas com uma atitude séria, um juramento, trabalhando todos os lados de uma relação de conquista: a alegria da união e presença do parceiro, e ao mesmo tempo o juramento, o ponto sobre o qual se firma isso, levando em consideração a sacralidade das palavras.

Gamanrúnar como “charadas” aqui pode ter sido usada num sentido similar mas mais específico, a estratégia de sedução então não seriam somente palavras agradáveis, mas charadas, brincadeiras com palavras e a imaginação e conhecimento. Creio que o sentido de gamanrúnar aqui esteja em algo no meio entre “palavras agradáveis”, ou “charadas para divertir”.

Na seguinte menção de rúnar é a primeira vez que isso acontece de maneira mais claramente definida, possibilitando uma interpretação que não só dá margem de entendê-las como letras, como na estrofe 115, o começo do Loddfáfnismál, mas mesmo joga a interpretação quase inequivocamente neste sentido, ao discutir uma sequência de crenças populares da época que serviam como remédios para problemas do cotidiano, como doenças, bruxaria, etc., no qual diz-se que
en [taka] við bǫlvi rúnar (estrofe 137)
(e letras rúnicas [lutam] contra maldições).
Substituindo-se aqui “letras rúnicas” por “conhecimento, sabedoria, mistério” teríamos um efeito similar, porém, todas as outras ferramentas de defesa contra os males na estrofe são de natureza física, para problemas físicos; é mais sugestivo então que esse mistério ou sabedoria tenha sido materializado, condensado em forma material: transformado em letras rúnicas. É sugestivo de se crer que um encantamento escrito ao estilo do Encantamento das nove ervas, Contra um disparo de elfo, ou Contra um anão, encontrados nos livros de cura tradicional anglo-saxões, mas mais resumido, como em evidências arqueológicas como o Cinto de Pforzen, onde runas entalhadas contam uma passagem com possíveis fins encantatórios, teriam sido usadas para se repelir maldições.

A partir daqui entramos no Rúnatal, a quinta parte do Hávamál, onde relata-se a famosa passagem de Óðinn pendurado na árvore, privado de comida e bebida, até que, em primeira pessoa, relata-se que
nam ek upp rúnar
œpandi nam fell ek aptr þaðan
(estrofe 139)
(peguei (e levantei) os mistérios, gritando os peguei e caí (para trás) dali).
Novamente encontramo-nos com uma passagem de difícil compreensão. Rúnar, como ficou demonstrado, poderiam ser mistérios falados e memorizados, ou então mistérios escritos. Todavia, as letras rúnicas só existem como chave para acessar o mistério falado: elas precisam ser lidas, exatamente como as letras deste texto. As letras, por si só, podem falar qualquer coisa ou coisa nenhuma; o que as guia é a intenção, sua sequência, o que elas são pensadas para significar. Com isso, o mistério, a sabedoria oculta pode guiá-las e então as letras rúnicas abririam, para o leitor do do texto, a compreensão desse mistério.

Nesse sentido, é provável que aqui Óðinn tenha acessado a sabedoria ancestral através do seu sacrifício, sendo a técnica da escrita de caráter secundário: aprendendo-se o mistério, a forma de escrevê-lo viria como consequência, como parte disso, e isso ficará mais evidente quando comparado com a estrofe 142, que veremos adiante.

Novamente aqui as rúnar aparecem, e desta vez, inequivocamente como caracteres escritos:
ef ek sé á tré uppi
váfa virgilná
svá ek ríst
ok í rúnum fák
at sá gengr gumi
ok mælir við mik
(estrofe 157)
(se eu vejo sobre uma árvore um enforcado balançando, então eu entalho e em letras rúnicas pinto, [para] que o homem ande e fale para mim).
Esta passagem, novamente, apoia e é apoiada pelas estrofes 139 e 142. Óðinn deixa claro que ele entalha (rísta) runas, o verbo usado evoca o ato de cavar sulcos sob uma superfície. A sabedoria ancestral é um encantamento necromântico, aqui, no qual Óðinn é capaz de fazer um cadáver voltar a andar e falar, ideia suportada pelos aptrgangar ou draugar, algo similar ao que entendemos como “morto-vivo” contemporaneamente, que são literalmente “aqueles que caminham após a morte (no mundo dos vivos, e com seu corpo material)”. O encantamento é traduzido e inscrito por Óðinn na forma de letras rúnicas, gravando no seu alvo as palavras mágicas capazes de trazê-lo de volta à vida. Todavia, você só pode gravá-las em runas se passar pelo processo de aprendizado do mistério.

As passagens a seguir são relacionadas aos stafir, esses sim mais inequivocamente voltados a letras escritas, onde referem-se às palavras ditas como um kenning, ao oposto do que acontece com rúnar:
Hinn er sæll
er sér of getr
lof ok líknstafi
(estrofe 8)
(É bem-afortunado aquele que para si consegue elogios e letras de agrado).
Logo na primeira aparição na oitava estrofe, os stafir são usados “letras (rúnicas)”. Comumente após a morte de pessoas renomadas eram erigidas pedras rúnicas em sua homenagem, e durante a sua vida eram cantadas canções e poemas retratando suas histórias. Isso casa perfeitamente com os dois termos usados: lof seriam os elogios, canções de louvor dos skalds aos heróis e pessoas com boa fama, enquanto líknstafir seriam possivelmente palavras usadas post mortem, eternizando em inscrições o feito e a fama dessas pessoas.

Na seguinte aparição de stafir, todavia, elas aparecem como um kenning, é um tanto fora de contexto definir stafir aqui como símbolos escritos, dado que toda a discussão se centra na prudência do uso da fala:
staðlausu stafi (estrofe 29)
(palavras (letras) sem fundamento).
A próxima vez em que stafir aparece, na estrofe 142, é onde vemos os significados mais diretos sendo usados
Rúnar munt þú finna
ok ráðna stafi
mjǫk stóra stafi
mjǫk stinna stafi
er fáði fimbulþulr
(estrofe 142)
(Mistérios você deve encontrar, e letras de conselho, letras muito importantes, letras muito rígidas, pintadas pelo grande sábio).
Toda essa passagem lida com uma gama de complexos significados. A análise completa da passagem só parece mais esclarecida se considerarmos que o significado primário de rúnar é “mistério” e de stáfir é “letra rúnica, caractere gravado sobre uma superfície e que pode ser lido”. Óðinn aqui sugere de maneira quase indubitável que o mistério é a primeira coisa a se encontrar, para então chegar às letras de conselho, as letras importantes e “rígidas”. Os ráðnir stafir, por sua vez, são as letras que quando lidas, desvendam conselhos. Stórir stafir são letras “grandiosas, amplas, vastas, poderosas, importantes”, pois são capazes de codificar e materializar o mistério. Já as stinnir stáfir são letras “rígidas, fixadas, determinadas”: letras que estão bem estabelecidas, por um poder divino, pintadas pelo grande sábio (fimbulþulr) Óðinn.

Através do conhecimento da tradição, do conselho ancestral, você é capaz de ler caracteres rúnicos. Sem o acesso à técnica da leitura, que faz parte do mistério tradicional, passado entre aqueles que se julgam como capazes de entender e continuar a técnica, as letras rúnicas não possuem qualquer valor. Estando escritas, e sendo possíveis de serem lidas, dão acesso ao conteúdo maior de mistérios, aquilo que foi gravado anteriormente em algum lugar, como um bastão, uma pedra ou um papel ou tecido; assim o intermédio entre emissor e receptor da mensagem não precisa acontecer de maneira oral, uma vez que a escrita, para aquele que conhece seu mistério, é capaz de desvendá-la por si só. Note que as estrofes 139 e 157 dão suporte e tornam essa interpretação a mais sensata diante de todo o contexto de uso de rúnar através do Hávamál e da ideia que termos cognatos são capazes de exprimir.

Teoria

Após verificarmos com detalhes a forma que rúnar, rūne  e outros termos são usados, é possível se compreender que:
  1. “Runa” referia-se primariamente a um “conselho, mistério, sussurro”;
  2. Do significado primário como conselho ou mistério transmitido de forma oral, graças à técnica da escrita, o sentido de “letra, caractere fonético”, foi derivado, e “runa” passa a se referir também de forma mais figurada em alguns lugares e menos figurada em outros como “fala entalhada sobre uma superfície”;
  3. Dado o poder mágico ou encantatório atribuído a palavras, em especial a palavras trabalhadas poeticamente, “runa” passa a significar também uma “escrita com propriedades mágicas” em determinados contextos;
  4. Note-se que o processo de cristianização entre os anglo-saxões foi anterior ao dos nórdicos, e isso explica em partes a associação mais forte das runas com magia e menos com usos seculares, entre esses povos, quando entraram em contato com uma cultura não cristã e que não adotava a escrita latina;
  5. Todavia, as letras rúnicas não foram associadas exclusivamente com o paganismo antes da invasão normanda da Inglaterra (1066), aparecendo tanto em livros, de forma decorativa ou estética, quanto em códigos legais escandinavos como o Codex Runicus (datado do século XIII), e sendo usados amplamente como sistema de escrita, como na Inglaterra, na Cruz de Ruthwell, datada do século VIII, onde a vida de Cristo é resumida em runas e desenhos em alto-relevo, ou a Urna de Franks, uma urna funerária também do século VIII, ou ainda o Caixão de Cuþbert, do século VI, um sacerdote católico que foi posteriormente canonizado como santo pela igreja romana. As letras rúnicas foram amplamente usadas fora de contextos religiosos e místicos, como qualquer outro sistema de escrita;
  6. O sentido de “runa” como “mistério, sabedoria, sussurro, segredo” foi bem estabelecido em várias fontes onde o paganismo ainda refletia-se fortemente na linguagem dos povos germânicos, em suas primeiras décadas ou séculos de conversão, sendo usado em várias fontes, entre elas o poema Bēowulf entre os anglo-saxões e o Heliand saxão;
  7. O sentido de “runa” como mistério ou conselho não estava necessariamente associado a um caractere rúnico ou símbolo escrito, sendo que qualquer conselho, oral, não verbal, poderia ser entendido como uma “runa” mesmo que não associado ao fuþark antigo, ao fuþorc anglo-saxão, o novo fuþark ou qualquer outro dos diversos alfabetos rúnicos: o próprio Hávamál, em si, poderia ser entendido como uma coleção de runas (“conselhos tradicionais, mistérios”), mesmo em suas partes não ligadas aos caracteres rúnicos;
  8. Nem todo mistério ou segredo, todavia, possuía caráter sagrado;
  9. É importante lembrar que o conhecimento de escrita e leitura, diferente da sociedade atual, não eram amplamente difundidos. A habilidade de manipular e entender caracteres escritos, as letras rúnicas, possuía um caráter sigiloso, possibilitando que, mesmo que inscrita em lugares públicos, muitas inscrições rúnicas, a depender da época, pudessem ser interpretadas apenas por um grupo social elevado específico, e então sua condição de "mistério", era assim facilmente preservada.

Conclusão e uso prático no paganismo moderno

Dessa forma, uma “runa” ou “conselho” pode ser acessada através de diversas formas, inclusive através de fontes escritas nas quais foram registradas, embora, muitas vezes, essas runas sejam apenas fragmentos daquilo que foram no passado, atestadas de forma indireta ou não intencional por escritores medievais, as quais podemos ter acesso em diversas fontes como a poesia e prosa dos povos germânicos, encantamentos e livros de medicina popular, registros arqueológicos, etc. Tudo aquilo que é capaz de nos fornecer informações sobre a antiga tradição é uma runa.

As runas estão, assim, em diversos locais: elas podem ser acessadas através do contato com a natureza, através dos escritos medievais, através de nossa experiência prática, de nosso dia-a-dia. Uma runa é um conhecimento que é transmitido, e boa parte desse conhecimento foi compilado no Hávamál, mas também em outras fontes.

O caractere rúnico é assim, quando escrito, totalmente dependente do significado, do mistério, do segredo que nele colocamos quando o escrevemos. A despeito do uso moderno como sigilos individuais, os antigos parecem ter visto mais sentido em combinações que pudessem ser lidas, e transmitir alguma mensagem objetiva ou subjetiva ao receptor, capaz de decifrá-las. Um cojunto de runas não possui sentido se não for escrita pelo seu autor acessando o mistério e dando acesso a esse mistério para aquele que a lê. Dessa forma, as expressões precisam ser escritas e passíveis de leitura.

Assim, o conselho, a sabedoria antiga, as runas podem ser acessadas na atualidade não apenas pelos poemas rúnicos, mas de diversas formas;  e novas runas (conselhos, sabedoria) podem ser criadas e contadas — ou mantidas em segredo — na atualidade.

Fontes


Medeiros, Elton O. S. Hávamál: tradução comentada do Nórdico Antigo para o Português.  <https://www.academia.edu/3610898/>
Dicionário Bosworth-Toller Online <http://bosworth.ff.cuni.cz/>
Dicionário Zoega Online <http://norse.ulver.com/dct/zoega/index.html>
Autor Anônimo, Bēowulf <http://fyrnsidubrasil.blogspot.com/2018/01/beowulf-texto-original.html>
Hávamál. trad. de Henry Adams Bellows, 1936. <http://www.voluspa.org/havamal.htm>

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