Mæġen e Cræft

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O primeiro passo a se notar é que a magia, independente muitas vezes de seus efeitos diretos sobre a realidade, pode, em muitos casos, ser considerada real. Isso porque a magia, seguindo aqui as ideias de Storms e Flowers, pode ter fins subjetivos que auxiliam praticamente. Tanto no caso do caçador que segundo Storms (1948: 30-31) ao traçar um círculo mágico na areia onde ele prende magicamente a sua caça, quanto no caso de Flowers (2006: 68-69) onde pessoas desempoderadas tenderiam a atacar as empoderadas magicamente, vemos a necessidade de se ter controle mental sobre a situação, acalmar os instintos internos e conseguir a sobriedade necessária para se encarar um desafio complexo (Storms 1948: 30-31).

Esse é o aspecto racional da magia, como um processo de natureza psicológica, ou uma forma de pensamento analógica, como será discutido adiante, independente do envolvimento dessa analogia no processo material que se desdobrou. Nesse sentido podemos falar da realidade da magia sem sombra de dúvida, e sua eficácia aqui pode ser tão comprovada quanto orações a divindades em credos monoteístas, ou qualquer espécie de gatilho psicológico que possa garantir sentimentos similares.

Entendendo que ao menos em um sentido restrito o que chamamos comumente de "magia" pode ser compreendido racionalmente, é possível ir adiante e analisar os conceitos que embasam o funcionamento da magia entre os povos germânicos pagãos, e possibilitar uma reconstrução da ideia de magia que seja útil ao Heathenry moderno. Diferentemente das noções correntes e ufanizadas no neopaganismo germânico na atualidade, inclusive influenciadas por figuras como Egill Skalagrímsson e outros personagens onde relatos reais e a fantasia se fundem, um ato mágico não era essencialmente visto como diferente de um ato cotidiano. Segundo Storms:
"A ideia fundamental da magia é a do poder, força ou vigor. O homem primitivo não distingue entre o poder ordinário, normal, natural e o poder extraordinário, anormal, sobrenatural ou não-usual, mágico, espiritual ou mesmo divino" (1948: 36).
Mais adiante ele complementa:
"distinguir entre a causalidade normal e a mágica não significa que haja um contraste, uma oposição, uma incongruência na aplicação prática das duas. Tanto na teoria quanto na prática, elas devem ser usadas lado a lado, como complementos uma à outra. Muitas vezes, vemos que os dois métodos se coincidem e, com frequência, é impossível separá-los, ainda mais quando as práticas mágicas dependem em grande parte da tradição e são suscetíveis de perder certos elementos enquanto mantém outros" (1948: 38).
Não se tratava exatamente de performar mudanças climáticas ou atitudes similares aos livros da série Harry Potter. A magia tocava o que era real e era capaz de operar mudanças práticas, tanto de um ponto de vista cético ou secular quanto de uma visão onde a magia é entendida como algo natural, isto é, pertencente à realidade cotidiana. A diferença é a explicação que a isso seria dada, tanto no caso da falha quanto no sucesso do ato mágico.

Andressa Furlan Ferreira, em sua tese de doutorado de 2017 alega, complementando a discussão iniciada por Storms que existe uma forma de pensar diferente, analógica, que é capaz de tornar possível entender o sentido das atitudes em povos que incorporam a magia:
"O pensamento analógico atuou fortemente em sociedades passadas e ainda se faz pre-sente em inúmeras situações contemporâneas, como em grupos religiosos que praticam magia e indivíduos que portam determinados objetos na crença de que estes têm influência sobre o meio ou uma circunstância. Trata-se de um pensamento pautado pela busca extensiva de semelhanças e correspondências entre tudo aquilo que existe — seres, coisas e fenômenos. Chevalier e Gheerbrant (2009, p. XVI), em seu Dicionário de Símbolos , alegam que “[a] analogia é uma relação entre seres ou noções, diferentes em sua essência, mas semelhantes sob certo ângulo” e complementam que “o domínio do imaginário não é o da anarquia e da desordem. As criações mais espontâneas obedecem a certas leis interiores” (2009, p. XXXVI).
Sendo um pensamento relacional, o pensamento analógico advém da concepção de que tudo está integrado, isto é, de que há uma contiguidade essencial em tudo e em todos, sendo possível, de acordo com esse raciocínio, influenciar um dado meio através da manipulação de elementos considerados afins. A exemplo disso, tem-se a complexa medicina medieval, que, herdando teorias da medicina clássica, se orientava pela concepção de que o homem é um microcosmo e administrava curas com base nas relações analógicas da teoria humoral. Apesar de as duas modalidades de pensamento — analógico e lógico — sempre terem coexistido, percebe-se a predominância de um desses pensamentos em alguns períodos históricos" (Ferreira, 2017: 33-34).

Em suma, "nós definimos a magia como a arte de empregar um poder impessoal que opera de forma tal que não pode ser percebido pelos sentidos físicos e que é realizado por meio de um ritual tradicional" (Storms 1948: 36). Esse poder, ao analisar o caso da magia anglo-saxã, Storms associa à palavra cræft no inglês antigo. Storms define cræft como
"poder, força, vigor; astúcia, conhecimento, habilidade e destreza; prescrição e solução. É usado em mais de vinte e cinco compostos: ela é bealu-cræftdry-cræftdwol-cræftgealdor-cræft, leodu-cræft, todos indicando algum aspecto da magia; mas também é æ-cræft, 'conhecimento das leis'; guþ-cræft, 'poder de guerra'; læce-cræft, 'arte da medicina, receita médica'; hyge-cræft, 'conhecimento,sabedoria'" (Storms 1948: 37).
Storms associa cræft com os conceitos de mana e orenda, destacando a similaridade entre eles:
"As investigações posteriores mostraram que a mana denota todo poder e não se restringe ao poder sobrenatural ou divino, como já estava implícito na segunda metade da definição de Tregear, pois o poder como tal só é notado quando não está na posse de todos. A mana é atribuída a cada pessoa ou objeto que se distingue de alguma forma de outras pessoas ou objetos: uma pedra com aparência curiosa contém mana, pois é distinta de outras pedras; um chefe possui mana, pois ele é distinto dos outros homens. Por analogia, todo objeto tocado por um chefe é preenchido com mana e torna-se tabu" (Storms, 1948: 37).

Eric Wōdening chega a conclusões similares, todavia, em vez de empregar o termo cræft usa mæġen:
"Os povos germânicos acreditam em uma força metafísica aproximadamente análoga ao conceito polinésio de mana ou ao conceito chinês de ch'i. Esta força recebeu muitos nomes entre os povos germânicos, mas entre os mais comuns era o inglês antigo mæġen (alto alemão antigo magan; nórdico antigo megin; sueco antigo megin; inglês moderno main) e seus cognados. Como muitas palavras para essa força metafísica, mæġen foi usada para força física, embora outras vezes, obviamente, se referisse a um poder maior do que uma mera força bruta. Parece que tudo no multiverso possui alguma quantidade de mæġen. No mínimo, sabemos que todos os seres vivos a possuem, dos insetos aos homens aos deuses (a ásmegin, que Þúnor tem em abundância). A mæġen também pode ser transferida de pessoa para pessoa; daí vemos os Reis emprestando spéd (outra palavra para mæġen) aos seus homens antes de entrar em qualquer empreendimento importante" (Wōdening 1998: 28-29).
Como abordado em outro texto (Seaxdēor 2017: 51-55), embora influenciado pelas noções de Wōdening, mæġen e diversos termos cognatos, tanto em línguas germânicas, latinas, grego e indo tão longe quanto o proto-indo-europeu estão sempre ligados a poder ou ter capacidade (de se fazer algo). Complementando a definição de magia de Storms, podemos definir um ato mágico como um meio de se usar da força não-visível do qual todas as coisas estão imbuídas, e algumas em maior quantidade, para tornar-se capaz de se alcançar determinado objetivo, de ter um determinado poder ou capacidade, controle e segurança sobre alguma situação.

Dentro da magia que se utiliza de runas, podemos ver um exemplo de como isso pode se manifestar de forma simples, com uma única palavra: na ponta de lança encontrada em Dahmsdorf-Müncheberg na atual Alemanha podemos ler em gótico a inscrição ᚱᚨᚾᛃᚨ (ranja) "aquela que aponta a rota" (literalmente "roteadora") e a associação com a lança mágica de Óðinn que nunca erra, relatada nas Eddas torna-se irresistível. Ao nomear o objeto de forma tão objetiva o intento de imbui-lo com um poder não comum é inegável.


Prática

A despeito de ser provada objetivamente ou não, a magia possui efeitos subjetivos perceptíveis das mais diversas formas para quem pratica atos que podem ser classificados como mágicos, ou seja, atos que envolvem a manipulação de mæġen ou cræft. O que importa não é a relação de causalidade no mundo objetivo, mas no mundo subjetivo das pessoas envolvidas no ato mágico, e se elas reconhecem a relação entre os eventos objetivos e os atos operativos que fizeram. É isso que torna possível a magia ainda nos dias atuais, uma vez que nunca foi exatamente removida do cotidiano das pessoas. Qual a relação de causalidade entre conversar com um computador travado, até que ele possa voltar a responder? Todavia, atos deste tipo nos rodeiam a todo o momento e sequer percebemos. De certa forma, tais atos são funcionais, desde que assim signifiquem para quem está envolvido com eles.

Referências

FLOWERS, Stephen E. How to do things with runes: A semiotic approach to operative communication, 2006.
FERREIRA, Andressa Furlan, Nykr o Espírito da Água Nórdico, 2017.
SEAXDĒOR, Daniel Falcão. Heathenry tribal: Reconstruindo a visão de mundo e os antigos costumes do norte, 2017.
STORMS, Godfrid. Anglo-Saxon magic, 1948.
WŌDENING, Eric. We are our deeds: The elder Heathenry, its Ethics and thew, 1998.

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