O que é Paganismo?

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Religião é um fenômeno multifacetado dentro e fora do mundo ocidental, por mais que instituições poderosas tentem simplificá-lo. Todavia, fora desse tipo de organização, os diversos povos desenvolveram inúmeras formas de encontrar o significado para sua existência e do mundo ao seu redor.

Definimos "religião" aqui como uma "relação entre uma comunidade humana e sua vida material". Em certo sentido, desta forma identificamos "religião" com qualquer sistema de conhecimento.  Também a afastamos assim da noção estritamente cristã. Essa definição parece demasiadamente ampla, todavia, seu objetivo é evitar etnocentrismos e arcaísmos.

Como cada comunidade humana se desenvolve em um determinado ponto no continuum que conhecemos como espaço-tempo,  sua relação é dependente dos fatores geográficos, como o tipo de paisagem, fauna e flora, clima, isolamento ou contato com outros povos, etc., e sócio-intelectuais, como o tipo de tecnologias desenvolvidas, idioma, práticas e crenças que foram tidas por antepassados, a própria história de cada povo, etc. Essa dependência entre geografia natural e intelecto e sociabilidade do humano e suas respectivas histórias locais é o que é capaz de trazer à vida as diversas formas de religião existentes, e as diversas variações nessas mesmas religiões [1].

Religião, direito e tecnologia são aspectos fundamentalmente ligados. Nenhum deles pode ser separado essencialmente do ser humano, dentro ou fora do cristianismo, porque cada um responde a uma das necessidades básicas do existir: a religião é o estado atual do que o humano pensa ou não pensa e como ele pensa que os mundos ao seu redor e interior são, o direito responde sobre aquilo que ele pode ou não fazer com esses mundos interior e exterior, a tecnologia é a maneira pela qual ele modifica esses mundos. Uma mudança em um necessariamente reflete uma mudança nos outros dois. É o que podemos ver no nosso atual tempo onde a tecnologia molda a todo o tempo as crenças populares, hora tendendo para um cientificismo, hora tendendo para o totalitarismo cristão que se utiliza do amplo acesso da informação possibilitado pelas atuais mídias.

Mas o que essa discussão aparentemente abstrata possui de concreto com o paganismo? Primeiro, "paganismo" é um termo que normalmente responde a ideias negativas. Isso porque estabeleceu-se nos últimos séculos no mundo ocidental a ideia da superioridade do modo de vida urbano, e tudo que é associado a ele, desde a forma de falar, trabalhar até pensar. No passado, quando o cristianismo ainda era uma semente do que viria a ser, como um vírus, ele se espalhou facilmente por cidades, mas foi atrasado pela geografia em sua jornada rumo à universalização do pensamento religioso. Um pagus assim como um heath é uma região rural. Pagão e heathen literalmente significam caipira, rústico, rural. Originalmente o termo era usado com esse sentido, e sem qualquer conotação religiosa ou associação específica com o politeísmo.

Todavia, os cristãos aplicaram-no indiscriminadamente a todo o sistema de pensamento dependente da relação do humano com sua cultura recebida e seu local no mundo; refere-se tanto ao que se praticava na Itália quanto o que se praticava na Escandinávia, Alemanha, Rússia ou qualquer povo distante que cristãos viessem a ter contato: seja na África, seja nas Américas.

É daí que paganismo assim também torna-se designativo de um sistema epistemológico (isto é, um sistema de conhecimento), uma religião com suas características específicas, assim como heathenismo (que possui em inglês sinônimos como Heathenry, Heathendom, Heathenship), como um grupo específico de paganismos que são relacionados aos povos germânicos ("germânicos" entendidos aqui como compreendendo ancestrais de populações modernas como Alemanha, Áustria, Escandinávia, Inglaterra, etc.).

O que confere validade ao termo "paganismo" é a dupla consideração de que (a) os diversos povos chamados pagãos possuíam aspectos elementares semelhantes em seus sistemas de crença em meio a uma infinidade de diferenciações; (b) o termo paganus, como designativo de "habitante de zona rural, agricultor, pessoa rústica, aldeão" [6] predata o cristianismo. Todavia, precisamos asseverar que mais corretamente não podemos falar de "o paganismo" senão num nível extremamente abstrato; muito mais correto é designar esse fenômeno no plural, "os paganismos", pois, apesar de aspectos mais ou menos basilares encontrados em todos eles, suas diferenças são abundantes demais para serem omitidas [2].

Uma das características essenciais do pensamento de povos que podem ser chamados de "pagãos" é a sua epistemologia, isto é, a sua teoria subliminar, sua maneira, sua técnica para adquirir conhecimento. Conhecer, segundo o modo atual no ocidente de pensar, equivale a tomar aquilo que se conhece como um objeto [7]. Tanto mais conhecemos algo quanto mais capazes somos de dividir ele em partes menores e inanimadas, isto é, "conhecer" é transformar em "coisa", coisificar e dividir. Isso é basicamente o modo cartesiano de pensar, que moldou nossa sociedade. Para outros povos, todavia, essa forma de conhecimento parece estranha, se não pouco inteligente: "conhecer" é ao contrário relacionar-se, compreender a personalidade e ouví-la [7]. Nesse ponto somos confrontados com a indivisibilidade de matéria e consciência, onde tudo é capaz de assumir aspectos que nós comumente apenas atribuímos a humanos. A epistemologia pagã, isto é, o modo de conhecer pagão, é pautado em entender como a realidade fala e responde ao humano, ouvindo-a como um ser igual ou superior ao humano. Obviamente, a ciência moderna, baseada na noção cristã da suposta superioridade do humano por sobre outras formas de existência, trata tal forma de pensar como infantil.

Mas os anglo-saxões não eram inicialmente cristãos, nem eram modernos ocidentais, portanto, em seu mundo todas essas características eram encontradas. Hǽðensċipe, que encontra seu equivalente moderno em Heathenship, foi atestado na Inglaterra antiga como um nome para Paganismo. Ele igualmente significa "costume rural" ou "caipirismo". O mais importante é que códigos de leis dos reis ingleses apontam definições do que era proibido como sendo Hǽðensċipe:
"Nós impomos que cada padre zelosamente promova o cristianismo, totalmente extinguindo o paganismo; e proíba culto de fontes de água, e necromancias, e divinações, e encantamentos, e cultos de homens, e as vãs práticas que são executadas com vários feitiços, e com santuários, e com anciãos, e também com várias outras árvores, e com pedras [...]. E impomos que em dias de festa abtenham-se de canções pagãs e jogos do diabo". (Cânones do Rei Edgar, circa 959) [3].
No século XI, durante o reinado do víkingr Cnut, suas leis apontam para uma definição similar:
“E proibimos fervorosamente todo paganismo: o paganismo é que os homens adoram ídolos; Ou seja, adoram deuses pagãos, e a Sol ou o Lua, fogo ou rios, fontes de água ou pedras, ou árvores da floresta de qualquer espécie” [4].

Dessas proibições nós conseguimos uma lista bem sólida que fornece uma definição do que paganismo significaria na Inglaterra anglo-saxã:

  • cultos solar e lunar;
  • culto de divindades;
  • culto de ancestrais;
  • culto de heróis;
  • culto do fogo;
  • culto de rios e fontes de água;
  • culto de árvores e pedras;
  • construção de santuários;
  • uso de divinações;
  • uso de encantamentos e feitiços;
  • canto de poesia com temas mitológicos.

Assim, uma vez entendido que esses aspectos ocorrem, resta entender a maneira, o jeito como esses elementos ocorrem especificamente entre os anglo-saxões, já que a maioria deles é encontrado em praticamente toda forma de religião chamada de paganismo pelos cristãos. É isso que faz uma religião pagã como o Fyrnsidu ganhar sua autonomia: entender a visão de mundo correspondente ao povo de determinado período e local, neste caso, os anglo-saxões entre os séculos V-VIII da Grã-Bretanha.

Importantíssimo notar, todavia, que os povos que baseiam nossa reconstrução do paganismo são essencialmente plurais em si, logo o termo "paganismo anglo-saxão" é uma construção consideravelmente artificial. As práticas de jutos, frísios, anglos e saxões (os povos germânicos que fundam a Inglaterra) parecem ter tido algumas diferenças entre si, mesmo que nosso material de comparação seja bastante pequeno. Tivessemos tido a sorte de mais materiais terem sobrevivido, provavelmente encontraríamos diferenças fundamentais. Por outro lado se tomarmos como exemplo duas diferentes comunidades saxãs na Inglaterra, por mais que suas práticas fossem similares, indubitavelmente elas ainda portariam diferenças, ou seja, nem entre as próprias designações tribais suas práticas eram uniformizadas [2]. Nesse sentido, o Fyrnsidu ou qualquer outra forma de paganismo anglo-saxão moderna pode ser entendido muito corretamente como a soma razoavelmente unificada do que restou-nos dessas práticas, algo que seria mais ou menos impensado antes da conversão.

Outro ponto importante aqui é que embora os códigos legais ingleses como os dos cyningas (grosseiramente equivalente a "reis" em nosso idioma) Edgar e Cnut expressem o que é proibido "fazer", por outro lado, eles versam nada sobre o que é permitido ou não acreditar. Talvez isso tenha sido tomado como garantido, mas o importante é que religiões são tanto sobre o que se acredita quanto sobre o que se faz. Embora a "fé" tenha uma função central no cristianismo moderno, indubitavelmente graças a crença pós-reforma dos protestantes de que cada pessoa tem acesso direto à divindade e a classe sacerdotal é mais ou menos obsoleta, e essa noção tenha invadido pesadamente o paganismo moderno, como podemos ver pelos documentos antigos o "agir", o que as comunidades na prática fazem era o foco [2].

Por exemplo, a despeito de todos os esforços da igreja, várias práticas pagãs foram assimiladas no cristianismo inglês desde os dias primordiais e algumas permanecem até hoje, mesmo que a maioria tenha sido varrida violentamente durante o Iluminismo. Isso coexistiu com o "acreditar" no deus cristão, provando-nos efetivamente que a visão de mundo de um povo, isto é, sua mais basilar forma de pensar, agir, fundada inconscientemente é muito mais resistente do que mudanças superficiais, embora notáveis, no sistema de crenças socialmente aceito [2]. É a mudança desse pensamento basilar, inconsciente, e não apenas do superficial, que aqui se intenta, uma vez que é ele que é capaz de edificar um modo de vida legitimamente pagão. Esse não é um processo cômodo, não é um processo simples e muitas vezes somos confrontados com ideias que parecem inquestionavelmente corretas. Mas é exatamente onde reside o inquestionável que o cristianismo nos afetou mais profundamente.

Importante também é notar que por mais que os paganismos anglo-saxões antigos envolvessem com toda a certeza práticas relacionadas com encantamentos, feitiços, etc., o paganismo em si não é "bruxaria" [2]. "Bruxaria" é um termo criado (com fortes conotações negativas) durante a Idade Média, e, assim como "paganismo", é um termo genérico, incapaz de abarcar a totalidade dos fenômenos a que se referia. O que é certo, por outro lado, é que diversas práticas – deixando-se de lado obviamente o culto de "Satã" se falamos de algo com a menor seriedade em tempos pré-cristãos – envolvendo encantamentos, receitas, ervas, divinações, etc., certamente eram encontradas entre os heathens anglo-saxões (e os germânicos como um todo), todavia, eles respondiam muito mais como uma parte essencial dos seus costumes que não era observado conscientemente antes da conversão. Isso significa que por mais que o que chamamos atualmente de "bruxaria" existisse dentro do corpus de práticas pagãs, nem tudo que pagãos faziam era "bruxaria" (existiam pessoas especializadas em trabalhos de natureza que chamamos "mágica" na atualidade, e o seu trabalho não compreendia tudo o que se fazia em termos de religião [5]). Em uma palavra, tais práticas podem  fazer parte dos heathenismos anglo-saxões, e em certa medida são esperadas que o façam, sem, todavia, corresponder ao todo do que eles são.

Longa como essa discussão sobre religião tenha sido, no entanto ela é incompleta por uma simples questão. Quando usamos o termo "religião" precisamos o ressignificar totalmente para que ele pudesse abranger várias coisas que comumente não chamamos de religião – mesmo cristãos não necessariamente entenderiam "paganismo" como "religião". A questão mais importante aqui é que sociedades tradicionais frequentemente estão desprovidas do nosso vocabulário religioso, não por atraso, simplesmente por diferentes origens culturais. Em chinês, japonês, nos períodos iniciais do nórdico antigo e inglês antigo, etc. uma palavra que traduzisse, ao pé da letra, "religião" com todos os sentidos implícitos no latim religio, que vem de religare (sim "religar") era completamente inexistente. Tanto chinês, quanto nórdico antigo usam composto com o termo "costume" tal "antigo costume" para se referir ao "paganismo", ou "novo costume" ao cristianismo.

É por isso que, por acertada como tenha sido nossa discussão sobre o paganismo como "religião" ela é apenas uma porta para o entendermos como costume e visão de mundo. Ou seja, o Fyrnsidu (antigo costume), na forma que o entendemos aqui é uma busca que visa recuperar tudo o que pudermos dessa maneira antiga de entender e se relacionar com o mundo ao nosso redor, experienciada pelos ancestrais anglo-saxões. Obviamente isso não exclui a ideia de que o Fyrnsidu é um sistema de conhecimento, apenas destaca que esse sistema de conhecimento tem uma forma externa; essa forma é o costume. E embora esse costume finque suas raízes no passado, é no presente que lança seus galhos e no futuro que vão suas folhas.

REFERÊNCIAS

[1] Linzie, Bil, 2007. Reconstructionism's Role in Modern Heathenry.
[2] Trubshaw, Bob, 2017. Continuity of Worldviews in Anglo-Saxon England. The Twilight Age, Volume I.
[3] Martin Carver, Alex Sanmark, and Sarah Semple (editors), 2010. Signals of belief in early England : Anglo-Saxon paganism revisited.
[4] Thorpe, Benjamin et al. 1840 (transl. and editors). Ancient Laws and Institutes of England.
[5] Crawford, Jane, 1963. Evidences for Witchcraft in Anglo-Saxon England.
[6] Dicionário Latim-Português Português-Latim. Porto Editora.
[7] Viveiros de Castro, Eduardo. Introdução ao Pensamento Indígena.

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