Cosmologia

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As fontes anglo-saxãs nos legaram não mais que farrapos de menções, e mesmo com evidências externas ainda assim a maior parte das informações permanecem obscuras e incompletas sobre a forma que eles entendiam o mundo. Não é o objetivo aqui fornecer mais que apontamentos e palpites educados pelas fontes medievais do que pode ter sido a forma geral das cosmologias nativas dos ingleses. A primeira ressalva a se fazer é que eles provavelmente viam as coisas com variações locais que foram totalmente perdidas para nós. Dito isto, podemos prosseguir.
  1. Nome do local onde os humanos vivem — Pela literatura anglo-saxã abundam menções do mundo como "Middanġeard" que, ao pé da letra, significa "área separada central". O termo é cognato de Míðgarðr no nórdico antigo, Midjungards em gótico e Middilgard em saxão antigo, que são usadas no mesmo sentido, mesmo em contextos cristãos. Ele certamente é estranho à teologia cristã, e as Eddas nos servem como prova final disso.
  2. Mais mundos — Se Middanġeard é a habitação do meio, podemos esperar então que o cosmos era compreendido de pelo menos mais dois mundos. De fato, no Lacnunga, livro de receitas de cura herbal (læċecræft) inglês (do final do séc.  X ou do início do séc. XI) encontramos menção a não menos que sete mundos (weorulda) no galdor conhecido como Encantamento das Nove Ervas (Nine Herbs Charm). Infelizmente, nenhum dos nomes nos foi transmitido além de Middanġeard.
  3. Eixo do mundo — Na Translatio Sancti Alexandri de Roberto de Fulda os saxões continentais do século IX são retratados cultuando uma universalis columna (coluna universal) de madeira, aparentemente um monumento bastante alto, que sustenta todas as coisas num sentido cosmológico, chamada Irminsûl. Na Vǫluspá, poema islandês provavelmente registrado em fins de século XII e começo do XIII, são mencionados nove mundos (heimar) sustentados por um freixo (askr) chamado Yggdrasill.
  4. Modelagem e não criação do cosmos — O termo inglês antigo usado por Ælfrīċ em sua versão da Biblia para traduzir o latim creator (criador) foi sċyppend, ao referir-se ao deus cristão. Todavia, sċyppend ao pé da letra significa "shaper", isto é, "modelador". A criação do mundo é referida como ġesċeap, "shaping", "modelagem", ao pé da letra. O verbo associado é sċeappan, "to shape", "modelar", "dar forma". Uma noção de criação do zero é notavelmente mediterrânea ou médio-oriental, nas Eddas os deuses modelam o corpo de Ymir pra fazer Middanġeard, não criam a matéria do zero, como na mitologia judaica. Certamente por razão similar os anglo-saxões não tinham a linguagem exata para definir os conceitos judaico-latinos que lhes eram estranhos.
  5. Animismo — O conceito de personalidades não-humanas (other-than-human persons) se relacionando com seres humanos certamente fazia parte das ideias subjascentes do paganismo anglo-saxão. Encontramos o termo "wiht" que significa "coisa, criatura", cognato de vættr no nórdico antigo, usado para se referir aos seres que grosso modo podem ser chamados de "espirituais". Isso encontra paralelos em povos indígenas ao redor do mundo, que igualmente possuem palavras grosseiramente com o mesmo significado, para citar apenas dois exemplos, tome-se o mbaé dos tupis e o atisoikanak dos ojibwa. Isso culmina na noção de que a paisagem é formada de entidades vivas, conscientes e capazes de interagir com os seres humanos. De fato, existem remédios e encantamentos contra ælfġesċōt (disparo de elfo) e contra dweorhas (anões) na literatura de cura herbal (læċecræft) menções literárias às ruínas romanas como enta ġeweorc (trabalho de gigantes) além de contos folclóricos vivos em pleno século XIX falando sobre gigantes (ettins) que dão consistência a isto. Ainda em se tratando de læċecræft, existe um galdor que visa a recuperação da fertilidade da terra (comumente chamado de Æċerbōt ou For Unfruitful Land) que menciona Erce eorþan modor (Erce mãe da terra), a qual parece ser um remanescente heathen da forma a qual a terra era compreendida antes de ter sido transformada em objeto inanimado durante o cristianismo. Cultos de fontes de água, pedras, sol, lua, nada disso possui sentido fora de uma visão animista, isto é, de que esses entes possuem personalidade e capacidade de interagir com os humanos, e tais atos são proibidos por códigos legais como os de Edgar e Cnut (embora esse último também já tivesse em conta o paganismo dos próprios dinamarqueses na Inglaterra, o mesmo Æċerbōt dá evidências de culto solar e da terra entre os ingleses).
  6. Irmãos cavalo-solares — Hengest e Horsa apresentam sinais de mitologia solar que remontam aos proto-indo-europeus, embora Hengest parece ter sido ao menos semi-histórico, uma vez que é o primeiro cyning
de Kent. O par tem comumente sido comparado aos Dioscuri latinos, ou mesmo aos Alcis de Tacitus. Poderiam ter sido entendidos como carregando a carruagem solar, e gravuras da Era do Bronze nórdicas (onde os ancestrais dos anglo-saxões ainda viviam nessa época) podem referir-se a um culto antigo ligado a cavalos e barcos solares, ambos elementos associados a Hengest e Horsa. Também parecem ter sido ligados aos Duropali, guardiães de portas de entrada e saída de lares — entre os saxões era costume entalhes de cavalos na junção de vigas, formando um "V" com o busto dos animais.
  • Hell — Na tradução em inglês antigo do Evangelho de Nicodemus Satan tem longos diálogos com Hell, uma entidade feminina e aparentemente, junto dele, responsável pelo Hell, o inferno. Na mitologia das Eddas, em especial a de Sturluson, Hel é o nome da deusa meio-morta que governa o inferno. Enquanto a parte do meio-morta pode ser pura criação de Snorri, o Hel como um local subterrâneo governado por uma entidade feminina parece bastante plausível, principalmente se comparado com outros povos indo-europeus — Hell e Hel são cognatos da deusa hindu Kali, e o Hades grego também é um submundo dos mortos. Embora seja argumentável a influência da literatura dos gregos em Snorri, também é visível pelas evidências arqueológicas desenterradas que parece ter havido uma longa crença na relação entre terra e mortos entre germânicos onde quer que habitaram, e a Inglaterra não foi diferente.
  • O Dryhten supremo — O deus cristão comumente aparece associado a títulos e valores da nobreza guerreira, como o título dryhten, que originalmente significava "líder de grupo de guerreiros". Dadas as características marciais atribuídas ao escandinavo Óðinn e a posição de Wōden nas genealogias reais anglo-saxãs, parece bastante educado se supor que um scyppend (modelador, transformador) do mundo heathen dos anglo-saxões também era entendido em termos de um dryhten poderoso, nobre, propiciador de vitórias em batalhas, possivelmente sendo o próprio Wōden e rendido culto especial por isso.
  • Ēarendel — Ao traduzir o hino O Oriens para o inglês antigo, o termo escolhido foi Ēarendel, que seria "o mais brilhante dos anjos". Disso, e dada a época que o hino foi usado, imagina-se que Ēarendel seria a estrela que desponta na alvorada, e que, nos tempos pagãos, pode ter sido associada a mitos. De fato, na Edda de Sturluson Ǫrvandill, cognato de Ēarendel, aparece como marido de Gróa. Esta auxilia Þórr, que tenta demonstrar agradecimento, relatando que enquanto carregava Ǫrvandill numa cesta em suas costas, um dos dedos do pé dele ficou para fora e congelou, o qual foi atirado nos céus e se tornou a estrela conhecida como "Dedo de Ǫrvandill".
  • *Ēastre — Bede na sua obra De Temporum Ratione cita um mês chamado ēosturmōnaþ, literalmente "mês de *Ēastre" e diz que nessa época os heathens celebravam festividades para a deusa. O nome literalmente significa "amanhecer", e pode ter significado uma deusa rejuvenescedora e da alvorada, como a grega Eōs e a romana Aurora, das quais Ēastre é cognata no mundo indo-europeu.
  • *Tīw — Entre os proto-indo-europeus *Dyḗus Ptḗr parece ter sido uma divindade essencialmente ligada ao céu, provavelmente vista como o céu, em si. Na Origine e Situ Germanorum, Tacitus diz que Tuisco (ou Tuisto) nasceu do céu e da terra, referindo-se à cosmovisão dos povos ingevões, ancestrais diretos dos anglo-saxões. "*Tīw", em inglês antigo, e "Týr", em nórdico antigo, são nomes que derivam linguisticamente de *Dyḗus no proto-indo-europeu, e isso fica mais interessante quando lemos o poema rúnico anglo-saxão onde a runa Tir (associada a *Tīw) fala na verdade de uma estrela do norte. Parece tentador demais para recusar características celestes sobrevivendo ainda em *Tīw, embora certamente de natureza mais sutil que a da antiga deidade proto-indo-europeia. Como nota final, se quisermos pensar que o "céu" do qual fala Tacitus é mesmo uma forma de *Tīwaz, o ancestral de *Tīw, vale-se dizer que de Tuisco nasce Mannus, o primeiro homem.
  • O ferreiro divino — A julgar pela quantidade de vezes que o nome de Wēland aparece na poesia e prosa anglo-saxãs associado a trabalhos fantásticos como ourives e ferreiro, resta pouca margem de dúvida que numa época governa pelo aço afiado ele tenha sido tido como um herói ou deus em alta conta, e as armas magníficas que rodeavam os ingleses eram tidas como trabalho do grande ferreiro.
  • O destino — A concepção de destino anglo-saxã parece ter tido uma importância considerável na cosmologia. Wyrd (literalmente "aquilo que tornou a ser"), a palavra que comumente é traduzida como "destino, curso de eventos, história, evento, condenação" tem ares de ser uma força incontrolável, e de fato o poeta de O Andarilho (The Wanderer) diz que wyrd bið ful arǣd, isto é, ao pé da letra, "a wyrd já foi totalmente proclamada em voz alta". De fato, um dos nomes anglo-saxões para o deus cristão é meotud, isto é "mesurador, aquele que mede". Na Europa Mediterrânea, as entidades associadas ao destino são mencionadas como medindo e cortando os fios das vidas individuais dos humanos. "Wyrd" por outro lado é cognato de "Urðr", que por sua vez é um dos nomes das Nornir, fiandeiras do destino nas Eddas. Apoiados no exemplo nórdico, grego e romano e na literatura e folclore tardio da Inglaterra, é tentador sugerir que no passado os anglo-saxões reconheceram três mulheres responsáveis por fiar os destinos individuais dos humanos.
  • Destruição final — O saxão antigo preservou o termo mudspelli, mutspelli e o alto-alemão antigo o termo muspilli. Ambos referem-se ao juízo final cristão, porém são palavras de origem germânica, então provavelmente não denotaram uma noção cristã, primordialmente. As Eddas nos confirmam isso: "Musspell" é ali o nome dado ao reino dos gigantes de fogo. É necessário ser cuidadoso, todavia. A Islândia, onde as Eddas foram escritas, é o único local onde povos germânicos habitaram quando ainda eram pagãos que possui vulcões. Isso certamente moldou a visão cosmológica deles e é de se esperar que "Musspell" não signifique a mesma e exata coisa fora da Islândia.

  • Grosso modo, isso é o que é possível de se depreender de fontes diretas ou imediamente adjascentes aos anglo-saxões sobre a concepção do mundo ao seu redor e sua criação. Mais que isso, resta ao novo e sábio sċop (poeta) inspirado por essas e outras informações que sobreviveram do paganismo antigo recriar novos versos para os novos heathens anglo-saxões.

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