Ervas, bruxaria tradicional inglesa e heathenismo anglo-saxão: um comentário
maio 01, 2018
Representação de construção de vila anglo-saxã
Apesar do grande destaque dado aos nórdicos na atualidade
graças à mídia de massas, os povos germânicos têm um grande acervo cultural
fora dos povos comumente chamados de “vikings”, que é apenas seu galho norte.
Analisaremos aqui rapidamente aspectos essenciais da cultura pagã dos
anglo-saxões, e como eles se entrelaçam com a bruxaria e o ambiente nativo destes
povos, e de que forma isso interessa para heathens anglo-saxonistas fora da
Inglaterra, e, principalmente, do hemisfério norte, como é o caso do Brasil.
“Anglo-Saxões” é o nome convencionalmente dado aos
colonizadores germânicos que se estabeleceram no sul da Grã-Bretanha, a maior
ilha do arquipélago que se localiza ao norte do que hoje é a atual França, a
partir do século V. Apesar do nome, outros grupos germânicos se estabeleceram
na Inglaterra, entre eles os jutos e os frísios, principalmente.
Os jutos e os anglos vieram da região que é a atual
Dinamarca, os saxões do norte da atual Alemanha, e os frísios do que é a atual
Holanda. Assimilando e dispersando os bretões, e se defendendo dos pictos, ao
norte, no que é a atual Escócia, e ao oeste, em Gales, nasceu uma nova região:
a Inglaterra, literalmente a Terras dos Anglos.
Mapa de migrações dos jutos, anglos e
saxões para a Inglaterra
Falar isso não é sem propósito: a religiosidade da
Grã-Bretanha antes da conversão dos anglo-saxões era bastante relacionada com
aquela dos invasores vikings de alguns séculos depois, e é conhecida da maioria
das pessoas nos dias atuais. Os dinamarqueses tinham Óðinn, Frigg e Freyja, Týr,
Yngvi Freyr e Þórr, por exemplo, enquanto os anglo-saxões alguns séculos antes
tiveram Wóden, Fríg, Tíw, Ingui Fréa e Þunor. Dessa mitologia “superior” pouca
coisa restou de conhecido nos dias atuais, o que motivou pessoas como Tolkien a
escrever o Senhor dos Anéis para
suprir tal ausência.
Além disso eram similares vários conceitos da “baixa”
mitologia, essa sim que resistiu muito tempo depois da cristianização, com
traços chegando até o começo da modernidade: enquanto os nórdicos tinham o Tomte e o Nisse, os anglo-saxões conheciam os hobs e hobgoblins, todos
esses eram nomes de uma criatura, uma espécie de duende guardião, que habitava
a casa dos humanos. Os nórdicos tinham os álfar,
jǫtnar e dvergar, os anglo-saxões os ylfe,
éotenas e os dweorgas, elfos, gigantes e anões.
Mas nem só de deuses similares aos dos dinamarqueses se
faziam os anglo-saxões. Como um povo germânico ocidental, assim como os que são
da região da atual Alemanha, eles também conheciam, além dos deuses já
mencionados em comum com os dinamarqueses, Éostre, a deusa da primavera e do
amanhecer, Seaxnéat e Hréðe (Rheda),
e os saxões e outros povos do continente conheciam Ôstar ou Ôstara, Sassnot e
possivelmente Uureða. Nenhuma
dessas divindades possui indícios de terem sido conhecidas dos escandinavos.
Haviam outras diferenças culturais: o calendário nórdico era
bastante diferente do anglo-saxão em comemorações, por exemplo, os anglo-saxões
celebravam o solstício de primavera com honras à deusa Éostre, enquanto os
nórdicos faziam o Sígrblót, o
sacrifício da vitória. Além disso, a poesia anglo-saxã coloca grande ênfase no
conceito de wyrd, uma espécie de
destino impessoal que regula todas as coisas, e os escritos tardios da
Escandinávia não refletem a mesma importância para conceitos de destino.
Disso, dá para se ter uma ideia geral de como era a
religiosidade anglo-saxã, embora os detalhes quase sempre sejam escassos, e os
poucos que temos mostram que eles são importantes. Por exemplo, enquanto Óðinn
parece ter sido um deus fortemente ligado à batalha, o que o Wóden britânico
também dá sinais de ter sido, todavia, este último também tinha um forte apelo
ao conhecimento das ervas: no livro Lacnunga,
o qual preserva uma grande quantidade de receitas de medicina popular usados
por curandeiros anglo-saxões, encontramos o Encantamento
das Nove Ervas, e Wóden, em vez de ter se prendido pelo conhecimento de
letras, das runas, o fez para criar Fille
e Finule, ervas interpretadas como
sendo Tomilho e Erva Doce.
Funcho, uma das ervas criadas por Wóden,
segundo o Encantamento das Nove Ervas
Além disso, apesar do retrato atual dos anglo-saxões ser
como um povo cristianizado e razoavelmente indefeso, cristão e pio, um cordeiro
na frente das presas dos invasores vikings, o retrato do cristianismo
anglo-saxão, segundo os próprios anglo-saxões, é bem diferente. Wulfstán II
ainda no século XI condena o paganismo forte na Inglaterra (embora em parte
trazido pelos dinamarqueses); o poema Béowulf
retrata sacrifícios a deuses pagãos, e poemas como The Dream of the Rood ecoam o mesmo tom do poema épico saxão
continental Heliand, onde Jesus é
apresentando como um rei guerreiro (cyning),
um herói em batalha, com valores totalmente pagãos e associados à ideia de liderança
nobre anglo-saxã. Em O Andarilho e no
próprio Béowulf, existem as
lamentações sobre a morte da cultura guerreira, associada com a troca de
presentes, os salões de hidromel e as tropas de guerra, típicas das sociedades
germânicas, que estavam em plena decadência.
Este poderia ser o Jesus anglo-saxão com seus 12
guerreiros… em oposição ao pobre marceneiro de Nazaré
Isso não foi um mero recurso literário. O memorável rei do século
IX, Ælfréd, o Grande, da casa de Wessex, resistiu fortemente à invasão viking,
vencendo e convertendo vários deles, inclusive os dinamarqueses, sob a
liderança de Guðrum. Æðelstán, neto de Ælfréd, estabeleceu domínio sobre toda a
Inglaterra, expulsando os vikings e pictos, e os valores tipicamente germânicos
relacionados à noção de æðel, nobreza, além da organização social
tipicamente proveniente de povos guerreiros foram mantidas.
Estátua em homenagem ao rei Ælfréd na Inglaterra
Um nobre título, inclusive, mesmo em tempos cristãos era Ingwine,
“amigo de Ingui (Fréa)”, e parece que os anglo-saxões retiveram a memória de se
verem como filhos de Ingui, como Tácito chama seus antepassados: Ingaevones.
Se os anglo-saxões possuíam essa ligação com Ingui Fréa, e sua contraparte,
Freyr, na Escandinávia, nos oferece a imagem de um deus da fertilidade, parece
razoável de se supor que, somadas às evidências dos livros de medicina do
cristianismo inicial, que invocavam deuses pagãos, com fórmulas altamente
paganizadas, rituais que pouco se diferenciaram de feitiços e magia para a
Inquisição católica, então esses germânicos na Grã-Bretanha eram um povo
altamente associado com a natureza, com uma religião que valorizava muito o
culto do natural.
Tudo isso nos oferece uma ideia geral de como funcionava a
espiritualidade pagã dos anglo-saxões que revivemos na atualidade. Isso é
comprovado por proibições como as Leis do Rei Cnut, que combatiam o
culto de fontes, sol, lua, e pedras, por exemplo; por outro lado, as evidências
arqueológicas desenterradas provam uma forte evidência de culto aos mortos e
ancestrais, todos elementos comuns na maioria das religiões étnicas de que se
tem notícia. Todos esses elementos, natureza e suas ervas, ancestrais e guerra,
tanto quanto nossas fontes atuais e entendimento podem mostrar, compunham o
núcleo do paganismo anglo-saxão, e qualquer pessoa interessada em suas práticas
de wiċċecræft (bruxaria), ou como quer que se queira chamar o ofício
mágico na Inglaterra, deve levar esses elementos em conta.
Como povos certamente animistas, os anglo-saxões
provavelmente viam as ervas e plantas como poderosos espíritos capazes de serem
manipulados para o bem ou para o mal, em conjunto com as criaturas
sobrenaturais corretas, para problemas como envenenamentos, vermes, roubo de
gado e até fertilidade da terra. As ervas tiveram uma função tão importante que
boa parte desse conhecimento foi vertido em livros que nos chegaram até os dias
atuais, embora ele tenha sido adaptado à cultura cristã que se tornara oficial
na época em que foram registrados.
Assim, a religião e o ofício (cræft) na Inglaterra
anglo-saxã, embora boa parte tenha permanecido através de práticas
contemporâneas, quando analisamos com um olhar reconstrucionista, precisamos
ter cuidado de separar aquilo que foi influência tardia, e aquilo que era
realmente acreditado pelos anglo-saxões. Embora autores ingleses de bruxaria
tradicional atual como Nigel G. Pearson deem um sabor bastante celta ao ofício
que chamam como tradicional inglês, creio que se falamos de algo mais próprio
ao século V, VI, VII e VIII e o período imediatamente posterior ao
cristianismo, encontraremos muito mais os deuses germânicos – como Wóden, no Lacnunga – que o deus cornífero e a sua
consorte.
Isso tudo destaca a importância de entender o contexto
social da tradição que temos de reviver, até porque uma coisa era essa religião
pagã e sua forma de ofício mágico ou bruxaria correspondente, na Idade Média
inglesa, outra é ela aqui, no século XXI no Brasil. Nossos eventos naturais são
largamente diferentes, nossas ervas são diferentes, nossas estações funcionam
em épocas diferentes, temos necessidades ambientais, existenciais e locais
diferentes: tente usar o calendário anglo-saxão mostrado por Beda no século VII
em conformidade com os eventos sazonais e astronômicos e então se irá encontrar
a verdadeira dor de cabeça em tentar reviver um sistema de crenças arcaico nos
dias atuais.
Sem estudar… You shall not pass!
O paganismo anglo-saxão, com boa parte de sua visão de mundo,
pode ser revivido bebendo em fontes nórdicas e indo-europeias, com a devida
atenção e cuidado para se evitar confusões e falsas induções criadas por
similaridades superficiais. Todavia, apesar desse caminho ser belo, dar
retorno, e ser agradável, ele está longe de ser simples. A grande questão que
fica, não só para anglo-saxonistas, mas para outros pagãos em geral é: apenas
com a análise e dedicação, como um Gandalf revirando por informações em antigas
bibliotecas em busca de informações sobre coisas perdidas no passado sobre o Um
Anel, na narrativa de Tolkien, é que esse passado que tanto nos atrai é capaz
de ensinar o que buscamos. E, muitas vezes, para saber se o que buscamos de
fato existe onde buscamos, é necessário suspender nossas noções prévias e
ideias solidificadas em busca de algo que imaginamos, e deixar o próprios
conhecimento dos antigos fluir através de nossas mentes, pelos poucos registros
que eles nos deixaram, para poder ser revivido nos dias atuais.
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