A Adaga Perdida: Reconstruindo Seaxnēat
(Clique no player para ver uma sugestão de pronúncia reconstruída do nome)
Seaxnēat deve ter sido uma divindade importante durante os tempos heathens dos anglo-saxões, no entanto não sabemos quase nada — se é que sabemos algo — sobre ele. No seguinte artigo eu proponho uma nova (ou nem tão nova) abordagem, aprofundando o entendimento sobre Seaxnēat, na esperança de trazer ele um pouco mais para fora da névoa em que ele está vivendo em nossos dias.
O entendimento básico
Existem apenas duas ocasiões nas quais o nome "Seaxnēat" aparece. Elas são exaustivamente mencionadas em qualquer texto sobre ele. A primeira é o voto de batismo datado do século VIII [ encontrado em?], escrito num dialeto germânico ocidental que é comumente pensado ser o saxão antigo, embora frísio antigo e franco antigo também sejam sugestões possíveis. Na parte principal das poucas linhas do documento podemos ler:
[...] ec forsacho allum Diaboles uuercum and uuordum, Thunaer ende Uuoden ende Saxnote ende allum them unholdum the hira genotas sint [...]
eu abandono todas as obras e palavras do Diabo, Thunaer e Uuoden e Saxnot e todos aqueles malditos que são seus genotas
Esse voto de batismo é claramente baseado na linguagem legal germânica. Diaboles uuerc ("trabalho do diabo", "trabalho diabólico") é em alguns lugares interpretado como significando "bruxaria", entretanto o par mid wordum and mid weorcum (com palavras e com obras) e pares similares como wed and āþ (promessa e juramento), næfre willes ne gewealdes (nem pela vontade nem pela força), mid rihte and wærlice (com justiça e verdadeiramente) são exemplos de pares comuns usados em juramentos ou promessas legais, e são fundadas na própria tradição germânica de assumir um compromisso legal [15], traindo a natureza jurídica e pagã do voto de conversão. Thunaer é claramente cognato do nome do deus do trovão em outros idiomas germânicos (como Þunor em inglês antigo e Þórr em nórdico antigo), assim como Uuoden é da mais conhecida divindade da guerra (Wōden em inglês antigo e Óðinn em nórdico antigo) e Saxnot é uma evidente variante dialetal de Seaxnēat, portanto não oferecem mais problemas de interpretação. Genot, por sua parte, é cognato de genēat no inglês antigo, e pode ser traduzido como "companheiro", mas é literalmente a classe mais alta dos ceorlas ou fazendeiros livres. Como vemos, apesar de ser em tese uma aceitação do cristianismo, é totalmente baseada em ideias pagãs.
O segundo documento são as genealogias reais de Essex, que não oferecem muito mais que o anterior:
De regibus orientalium seaxonum, offa sighering, sighere sigberhting, sigberht s[aweard]ing, saweard saberhting, saberht sledding, sle[dd] æscwining, æscwine offing, offa bedcing, bedca [sigefugling], sigefugl swæpping, swæppa antsecging, ants[ecg] gesecging, gesecg seaxneating.
Sobre os reis dos saxões orientais: Offa filho de Sighere, filho de Sigberht, filho de Saweard, filho de Saberht, filho de Sledd, filho de Æscwine, filho de Offa, filho de Bedca, filho de Sigefugl, filho de Swæppa, filho de Antsecg, filho de Gesecg, filho de Seaxnēat.
Como podemos ver, não há muito para inferir dessas curtas passagens. Dada a posição de Seaxnēat como fundador da casa real, lugar que em todos os outros documentos genealógicos ingleses é reservado a Wōden, e da aparição de Saxnot junto de Thunaer e Uuoden no voto de batismo continental, tudo o que podemos concluir é que ele foi em importância tão grande quanto essas duas divindades um dia, e bastante conhecido pelos saxões, tanto continentais, quanto insulares, se o compararmos com o que sabemos de Þórr e Óðinn através da mitologia do século XIII da Escandinávia. Nem mesmo se a reivindicação de Grimm [16][17] de que Seaxnēat seria filho de Wōden nas genealogias reais for verdadeira isso diminui a importância ou poder dele uma vez que várias outras figuras principais na mitografia nórdica como Þórr, Freyr, Freyja são filhos de divindades igualmente conhecidas e nem por isso assumem funções secundárias ou menores.
O lugar comum da línguistica e academia sobre Seaxnēat
Como nem mitos versando sobre a natureza de Seaxnēat foram herdados por nós, nem achados arqueológicos podem ser associados diretamente (ou indiretamente) ligados a ele, a linguística parece ser um bom local, se não a única opção restante, para começarmos uma investigação mais profunda.
O nome "Seaxnēat" é comumente entendido como compreendendo duas partes: seax, um tipo de adaga ou faca com gume em apenas um lado, e -nēat que é comumente interpretada como derivando de genēat, que é então simploriamente traduzido como "companheiro". A tradução óbvia então é assim "Companheiro de Faca" ou "Companheiro dos Saxões" [1].
Essa interpretação é comumente associada à bandeira de Essex, a qual exibe três cimitarras heraldicamente estilizadas. Todavia, esse símbolo parece ter sido primeiramente publicado em 1611, por John Speed em seu atlas The Theatre of the Empire of Great Britaine, provavelmente fiando-se no relato de Richard Vestergan, que declarou em sua obra de 1605 A Restitution of Decayed Intelligence que "Erkenwyne king of the East-Saxons did beare for his armes three argent, in a field gules", isto é, que "Erkenwyne, rei dos saxões orientais, carregava como seu [brasão de] armas três [adagas do tipo seax] prateadas em um fundo vermelho" [2].
As três seax como aparecem no livro de Speed. Fonte: BRITISH COUNTY FLAGS, Essex Flag. <https://britishcountyflags.com/2013/05/20/essex-flag/> |
É tentador associar a bandeira de Essex e a menção de Seaxnēat nas genealogias do mesmo reino, mas isso realmente parece ser um anacronismo; o relato de Vestergan nem mesmo tem uma fonte direta, para não mencionar o período entre oito e dez séculos entre o tempo heathen anglo-saxão e o primeiro relato da bandeira moderna de Essex.
Por outro lado, a mitologia comparada oferece alguns insights. Os melhores esforços acadêmicos são resumidos no livro Elder Gods de Stephen Pollington: tanto Hilda Ellis Davidson quanto Georges Dumézil sugerem que Seaxnēat significa "companheiro de espada" (sword companion), e isto em alguma forma pode ser relacionado com o relato de Tacitus de danças com espadas apresentadas em banquetes dos germânicos do século I. North sugere que Seaxnēat pode ser o deus ancestral ou tribal dos saxões e sua aparição junto com Wōden no voto batismal impede qualquer identificação de ambos.
Jacob Grimm identifica Seaxnēat com Tīw, o que, como veremos adiante, tem suas boas razões, embora não pelos motivos que ele pensa. Chaney apoia a opinião de Grimm, mas Rudolf Simek associa Seaxnēat com o escandinavo Freyr (o qual deve ser o mesmo que o Ing, mencionado no poema rúnico anglo-saxão) [3]. Grimm compara algumas trindades como a encontrada nas Eddas como "Óðinn, Asabragr, Freyr", ou a de Adão de Bremen "Wodan, Thor e Fricco" (onde Fricco seria Freyr) com a atestada no voto de batismo como "Thunaer, Uuoden e Saxnot", e disso aponta que seria possível uma identificação de Seaxnēat como Freyr, ainda mais porque deste último é dito que ele tem uma espada, embora Grimm, ainda assim, prefira associar Seaxnēat com Zio (Týr), mesmo sem esse último ter uma espada mencionada [16].
A evidência linguística não suporta esse tipo de identificação, e de certa forma eu creio que elas vão longe demais: a epistemologia (ou se preferir, a religião) germânica como um todo era associada com características guerreiras, e mesmo fazendeiros e trabalhadores rurais parecem ter sido experimentados pela batalha em um momento ou outro invariavelmente ao longo de suas vidas. Seguindo essa lógica, Seaxnēat deve ter tido características da nobreza associada a ele assim como o que conhecemos de Óðinn, Freyja, Njǫrðr and Freyr, os quais podiam ser de alguma forma relacionados à guerra sem todavia ter isso como única função também.
Pollington e além
Existem alguns apontamentos linguísticos que devem ser levados em consideração para melhor entender a natureza de Seaxnēat:
"A palavra neat, nyten normalmente significa 'gado' mas o termo geneat refere-se a uma classe de nobres homens livres, e esse deve ter sido o sentido que intenciona-se aqui. A grafia alternativa Sahs-ginot apoia isso, uma vez que ginot é aparentemente cognato de geneat. [...]
O fato que ele foi nomeado ao lado de Uuoden e Thunaer implica que ele pode ser um deus de terceira-função, associado com fazendeiros, pescadores, trabalhadores e mercadores, e que ele estava no mais alto grupo de divindades; se isso for verdadeiro, o elemento -neat em seu nome pode então implicar uma conexão com 'gado'. É igualmente possível que o segundo elemento possa ser relacionado com a palavra nett 'rede' (do proto-indo-europeu *ned- 'ligar, amarrar') e logo referir à ligação da espada ou seax em serviço do deus" (Stephen Pollington — Elder Gods, tradução minha).
Se prosseguirmos com a identificação de Uuoden com Óðinn e Thunaer com Þórr, parece dificil provar se Seaxnēat foi um deus da terceira função, ou seja, um deus dos trabalhadores. Se Þórr é um deus mais ligado ao povo comum, Óðinn é um deus mais relacionado com as elites guerreiras, então ambas as opções parecem igualmente possíveis aqui. Por outro lado, pode-se argumentar que Uuoden, Thunaer e Saxnot implicariam três distintas classes sociais ali, cada uma que seria mais dedicada a um deus: Uuoden à nobreza governante, Thunaer aos trabalhadores e Saxnot poderia assumir assim ou o papel da classe sacerdotal, o que parece pouco provável, embora encaixa-se na linguagem duméziliana, ou então da classe de guerreiros, entendida como uma classe auxiliar da nobreza política que governava de fato.
Mas se nós também vermos o nome Seaxnēat como um composto de seax (faca, adaga) e genēat ("classe de nobre homem livre"), como Pollington sugere, então uma variedade de interpretações é possível. A sociedade anglo-saxã era altamente hierarquizada. No topo de cada reino estava o cyning, seguido por aqueles que eram elegíveis a assumir seu posto, os æþelingas; os ealdormen eram uma classe de nobres que governavam nos condados (scīre), e eles eram capazes de escolher um novo cyning entre os æþelingas. Qualquer um desses homens nobres poderia ter seus þegnas, uma classe de protetores pessoais que recebiam a amizade e compartilhavam as riquezas do seu dryhten (senhor). Abaixo dos þegnas estavam os ceorlas, "homens livres, fazendeiros e chefes de família independentes com propriedade de terra, que formaram o suporte principal do reino saxão, baseado como ele era em economia rural". Os mais nobres deles eram os genēatas. Alguns outros ceorlas eram os kotsetlas e geburas. A classe mais baixa de cidadãos eram os þēowas, os escravos [4].
Então, parece bem razoável interpretar o nome como "Gēneat com seax", o "Nobre-homem-livre com uma faca", "Gēneat de faca" ou então "Seax do gēneat", "Faca do gēneat". Como podemos ver, ambas as interpretações podem implicar as mesmas ideias: que o deus era originalmente o protetor de um tipo específico de ceorlas ou homens livres, os genēatas, e que a faca de tipo seax era sua arma ou símbolo sagrado.
Gēneatas na sociedade anglo-saxã
Se Seaxnēat deve ser entendido como o deus dos genēatas, o que é um genēat, em primeiro lugar? A palavra "genēat" em inglês antigo encontra sua origem no verbo nēotan, "aproveitar, ter o benefício de, fazer uso de, usufruir", enquanto a primeira parte, ge-, é uma partícula perfectiva, grosso modo indicando que uma ação foi executada, e é comumente omitida em várias situações (muitas palavras com e sem o ge- possuem grosseiramente significados similares em inglês antigo). Um genēat é assim literalmente "aquele que usufrui (da amizade de um nobre)". O dicionário Bosworth-Toller também ilustra que um genēat é alguém que pertence ao lar (household) ou segue o comitatus (grupo de guerreiros) de um superior (que pode ser um cyning [5]); um inquilino (tenant) prestando serviço e pagando aluguel ao senhor, um companheiro de lareira [6].
"Os ceorls eram 'folc-fry' (povo livre), isto é, livres nos olhos da comunidade. Eles usufruíram de weregilds [compensação paga aos familiares pelo assassinato de um parente] e tiveram direito a procurar compensação por outros parentes livres. Eles foram permitidos carregar armas e considerados 'dignos do fyrd', e 'dignos da assembleia [moot]'. Isso significa que eles eram considerados dignos de servir no fyrd [exército composto de civis] e tomar parte nas reuniões populares. Eles não tiveram o mesmo grau de liberdade que os ðegns ou eoldermen. O weregild de um ceorl era estabelecido nominalmente em 200 xelins, um sexto daquele do de um ðegn. Havia três principais classes de ceorl, embora a linha divisória entre as classes fosse indistinta. Primeiro, haviam os geneatas, a aristocracia camponesa que pagava aluguel ao seu soberano. Geneat originalmente significava um companheiro, implicando que a classe originou do lar [household] do senhor, geralmente recebendo terra como um presente" (Regia Anglorum — Anglo-Saxon Social Organisaton, minha tradução).
De acordo com o Gerefa, um documento anglo-saxão, as principais funções dos genēatas podiam ser assim resumidas:
Geneat riht is mistlic be ðam ðe onlande stænt, on sumon he sceal land gafol syllan ond gærsswyn, on geare, ond ridan ond auerian ond lade lædan. Wyrcan, ond hlaford feormian. Ripan ond mawan, deorhege heawan. Ond sæte haldan, bytlian, ond burh hegegian nigefaran to tune feccan, cyricsceat syllan, ond ælmes feoh, heafodwearde healdan, ond horswearde, ærendian, fyr, swa nyr, swa hwyder swa him mon to tæcð.
"O dever do genēat é variado, de acordo com [os costumes] que mantem-se no estado. Em alguns ele deve pagar taxa pela terra e um porco pelo direito de pasto anualmente, e montar e fornecer cavalos para trabalho em grupo e transportar cargas, trabalhar, prover comida para o senhor, fazer colheita e aparar o mato, cortar a cerca de animais, manter as armadilhas, construir e cercar habitações em áreas delimitas, e guiar visitantes ao cercamento, pagar os tributos da igreja e o dízimo, manter a guarda e guardar cavalos, ir em viagens de negócios, tanto longe quanto perto ou em qualquer lugar que ele for enviado" [13].
Os genēatas eram um tipo de aristocracia camponesa. Eles eram livres do trabalho semanal (week-work), e eles tinham muitos serviços, mas nada tão inconveniente para um homem livre, no entanto. Os genēatas eram camponses com algumas características de um þegn montado. Eles eram também conhecidos como cavaleiros conselheiros (radknights) ou conselheiros (radmen), os quais serviram como uma ligação entre a casa (household) do senhor e o campesinato, especialmente no ocidente da área conhecida como "Midlands" da Inglaterra anglo-saxã [7]. Embora muitos dos deveres dos genēatas fossem de natureza agricultural, eles tinham trabalhos considerados honoráveis, e a posição deles na hierarquia anglo-saxã era substancialmente mais alta que aquela de um gebur, o tipo mais baixo de ceorl [8].
Quando traduzindo a Bíblia para a antiga língua inglesa, muitas vezes os cristãos primitivos da Inglaterra a adaptaram para ser mais simplesmente compreensível ao povo, que era heathen em grande parte de seus costumes, adaptando-a, talvez inconscientemente, imprimindo suas próprias visões de mundo culturais nos textos. Por exemplo, uma passagem do Gênesis foi vertida como
Bigstandað me strange geneatas, þa ne willað me æt þam striðe geswican, hæleþas heard mode. Hie habbað me to hearran gecorene, rofe rincas; mid swilcum maeg man ræd geþencean, fon mid swilcum folc-gesteallan. Frynd hie mine georne, hold on hyra hyge-sceaftum.
"Fortes genēatas permanecem comigo, heróis-guerreiros [hæleþas] de mente forte que não vão me falhar na batalha. Eles escolheram a mim como seu senhor [hearran] os bravos guerreiros; com tais apoiadores pode-se considerar planos, responsabilizar-se por eles com pessoas tais essas. Eles são meus zelosos amigos, leais em seus corações" [9].
Se Seaxnēat é especialmente ligado a essa específica classe de cidadãos anglo-saxões, então nós podemos esperar que seus atributos sejam relacionados com tudo isso. Mesmo se interpretarmos -neat apenas como um tipo não específico de "companheiro", os genēatas podem oferecer uma boa dica do que "companheiro" poderia significar na Inglaterra anglo-saxã.
Como observação etimológica final, vale destacar que a primeira parte do composto no inglês antigo, seax, e o latim saxum ("rocha, pedra") possuem a mesma origem, o que pode servir para tirarmos mais conclusões sobre o significado deste nome.
E sobre o "deus tribal dos saxões"?
Seaxnēat é comumente considerado na heathenry anglo-saxã moderna como uma divindade tribal, o progenitor de todos os saxões, com apoio de Grimm [18]. Ao ligá-lo mais diretamente a uma classe específica da sociedade inglesa primordial não estamos negando este status. O Lārhūs Fyrnsida [10] deu a Seaxnēat alguns bīnaman (nomes invocatórios) como Beadurōf (Renomado na Guerra), Beaduscearp (Afiado em Batalha) mas os mais interessantes são Þēodōs (Deus da Tribo) e mais que todos Þēodætta (Pai da Tribo), o qual, por sua vez, é a forma reconstruída em inglês antigo do nome gaulês Toutātis.
Como Seaxnēat foi em ao menos uma ocasião dito ser o ancestral da classe regente (os reis guerreiros), é de se esperar que ele não fosse unicamente associado com os genēatas. Vamos ver o que pode ser entendido do Toutātis e em qual maneira isso pode nos ajudar a compreender qual papel Seaxnēat ainda pode executar na heathenry anglo-saxã moderna.
No politeísmo gaulês moderno, Toutātis pode ser definido como:
"Muitos escritores antigos parecem referir-se a uma divindade variadamente nomeada Toutatis, Teutates, Teutenus, Toutiorîxs, e assim por diante. A divindade, comumente chamada de um Deus-da-guerra, é variadamente identificada com Marte, Mercúrio, Júpiter, e a Apolo. Na verdade, o termo, Toutatîs no plural, refere-se aos deuses de tribos e localidades. Cultos tribais estiveram em todos os locais na antiga Gália. Toda tribo e localidade tinha uma, embora nem todas sejam conhecidas hoje em dia" [11].
Então, Toutātis não deve ter sido um teônimo, ele é mais provavelmente um título dado a divindades tribais celtas em vez disso. O nome encontra sua origem no proto-céltico *towtā-āti, "aquele (que vem) da tribo/nação". Ele é um tipo de deus especialmente dedicado à vida comunal de uma toutā (tribo). O que nós podemos concluir disso é que no passado pré-cristão e pré-romano poderia haver a clara concepção de que o Deus da Lei pode ter sido o soberano entre os deuses (o que a reconstrução linguística proto-indo-europeia apoia), mas esse deus teria perdido a sua mão direita em conflito com seus rivais, como vemos em lendas celtas.
Tivesse Grimm aqui encontrado razões para associar Seaxnēat com o Týr escandinavo, seu argumento teria tomado mais substância. Todavia, apesar do encontro de temas mitológicos semelhantes, é válido lembrar que nem de longe essa é a primeira similaridade, com temas de deuses se sobrepondo: (1) várias divindades germânicas podem ser associadas com guerra e/ou batalha (Týr, Freyja, Óðinn e Þórr entre os escandinavos); (2) várias divindades podem ser associadas à fertilidade (Freyja, Freyr, Þórr, Njǫrðr, Gerd, Jǫrð no norte); (3) Frigg e Freyja, há muito se sabe, ambas vêm de uma mesma divindade ancestral, a *Pria proto-indo-europeia, e isso é visto não apenas linguisticamente, seus próprios mitos, mesmo no período em que são escritos no século XIII, ainda estão muito mal separados (tome-se a questão da infidelidade e a relação com o ouro de exemplo). Não é impossível, assim, que Seaxnēat e Tīw tenham sido duas divindades diferentes apesar de evidentes similaridades.
Como entre os celtas havia a clara noção de que apenas um indivíduo fisicamente perfeito poderia governar decentemente, isso deve ter tornado para o Deus da Lei impossível manter seu papel. Seu sucessor é o Deus do Trovão, Todavia, a despeito de ter sido deposto, seu legado continuou na forma das leis e regras sociais e morais. Como o primeiro soberano, deve ter sido esperado que ele tenha estabelecido as normas que viriam guiar a vida da comunidade, daí o nome "Deus da Lei". Todavia, Toutātis é comumente associado na religião romana com Mārs, que, a parte de seus bem conhecidos atributos como deus da guerra, é também uma divindade agricultural; água também figura um papel importante em divindades que podem ser associadas com o título de Toutātis, mesmo que elas não sejam necessariamente da água ou dos mares [12] (veja a divindade celta Nōdons sobre isso), como o mar e a água são importantes para eles majoritariamente como um meio de transporte. Por exemplo, em um dos poemas genealógicos irlandeses, nós lemos que
"3. Veloz em navios, ele atravessou o mar como um guerreiro do oeste: um vento vermelho, o qual pintou as lâminas das espadas com uma nuvem sangrenta.
4. Fergus Fairrge, Nuadu Necht, forte e bravo: um grande campeão que não ama a punição de um senhor justo" [14].
Então, o mar é claramente importante por sua associação com qualidades limítrofes, como uma fronteira entre duas realidades, as quais podem trazer o desconhecido do Outromundo para o mundo dos homens. É tentador associar a passagem acima mencionada com as linhas iniciais de Beowulf, onde é descrito como Scyld Scēfing chegou por mar à terra dos danos e como ele desenvolveu um povo ali.
Conclusões, reconstrução e utilização prática
Baseado nisso podemos assim tirar as seguintes conclusões:
- Seaxnēat assumiria então funções próximas do deus da lei, embora não fosse o deus da lei em si, que seria identificado com Tīw.
- Seaxnēat pode ser no entanto associado ao papel de deus protetor do povo (anglo-)saxão, seu fundador e aquele que lhe ensina o seu þēaw ou ethos, isto é, sua ética e maneira de ser no mundo, seus costumes. Por extensão, Seaxnēat pode ser entendido com um papel similar ao Heimdallr nórdico como o organizador das classes sociais tribais inglesas.
- Seaxnēat pode ser associado ao mar sem no entanto ser uma divindade do mar; o mar é, na verdade, seu meio de transporte e o local de onde ele traz aquilo que é desconhecido aos humanos. Talvez disso se possa derivar uma função de Seaxnēat como patrono de marinheiros ou abençoador de embarcações.
- Seaxnēat pode ser entendido como uma divindade da guerra, e talvez possa ser associado, nos dias modernos, aos próprios soldados (embora certamente essa classe de pessoas tenham outras divindades também que se identifiquem com essa função, como Tīw, Wōden e Þunor, cada uma à sua maneira). Nos tempos antigos, Seaxnēat podia ser o deus do comitatus (dryht, weorod), isto é, do grupo de guerreiros, e do fyrd, o exército de homens livres.
- Lâminas, em especial facas, e entre elas majoritariamente a seax são representações não antropomórficas ou símbolos ideais. Seriam também o tipo mais correto de ofertas a serem depositadas.
- Seaxnēat pode inequivocadamente também ser associado ao trabalhador comum, especialmente em todo o tipo de trabalhos coletivos.
* * *
Na heathenry anglo-saxã moderna, seja ela o Fyrnsidu ou qualquer outra denominação, Seaxnēat sempre tem, ou idealmente teria, um papel central nas nossas práticas. Ao repensar e aprofundar o entendimento sobre ele espera-se que nossas tradições possam se desenvolver melhor e mais fortes. Nemet oure saxas!
REFERÊNCIAS
[1] POLLINGTON, Stephen. Elder Gods: The Otherworld of Early England. Anglo-Saxon Books, 2011.
[2] BRITISH COUNTY FLAGS, Essex Flag. <https://britishcountyflags.com/2013/05/20/essex-flag/>. Acessed in 27/09/2018.
[3] NYGON WYRTA FYRNSIDU, Seaxnēat . <https://fyrnsidubrasil.blogspot.com/p/ham-teologia-godu-deuses-seaxneat.html>. Acessed in 27/09/2018.
[4] REGIA ANGLORUM, Anglo-Saxon Social Organisation. <https://regia.org/research/history/Saxons1.htm>. Acessed in 27/09/2018.
[5] LAMBERT, Tom. Law and Order in Anglo-Saxon England, Oxford University Press, 2017. <https://books.google.com.br/books?d=eucwDgAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=o nepage&q&f=false>. Acessed in 27/09/2018.
[6] Bosworth-Toller Anglo-Saxon Dictionary. <http://bosworth.ff.cuni.cz>. Acessed in 27/09/2018.
[7] STENTON, Frank. Anglo-Saxon England . Oxford University Press, 1971. <https://books.google.com.br/books?id=0Y65NxJaMtcC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=on epage&q&f=false>. Acessed in 27/09/2018.
[8] BLAIR, Peter Hunter. An Introduction to Anglo-Saxon England. Cambridge University Press, 2003. <https://books.google.com.br/books?id=9eN87VsPaw0C&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=on epage&q&f=false>. Acessed in 27/09/2018.
[9] BROOMHALL, Susan (org.) Gender and Emotions in Medieval and Early Modern Europe: Destroying Order, Structuring Disorder . Routledge, 2016. <https://books.google.com.br/books?id=rlmrCwAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR>. Acessed in 27/09/2018.
[10] LĀRHŪS FYRNSIDA. Seaxnēat. <https://larhusfyrnsida.com/fundamentals/godu/seaxneat/>. Acessed in 27/09/2018.
[11] WIDUGENI, Segômaros. Toutatîs. <http://polytheist.com/segomaros/2016/01/20/toutatis/>. Acessed in 27/09/2018.
[12] CELTOCRĀBII̯ON. Deus da Lei. <https://celtocrabion.wordpress.com/noibii-os-sacros/deuses/deus-da-lei/>. Acessed in 27/09/2018.
[13] EARLY ENGLISH LAWS. Gerefa (RSP + Ger). <http://www.earlyenglishlaws.ac.uk/laws/texts/rspger/view/#edition-2/translation-2>. Acessed in 28/09/2018.
[14] KOCH, John T. Celtic Culture: A Historical Encyclopedia . ABC-CLIO, 2006. <https://books.google.com.br/books?id=f899xH_quaMC&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=on epage&q&f=false>. Acessed in 28/09/2018.
[15] AMMON, Mathias. ‘Ge mid wedde ge mid aðe’: the functions of oath and pledge in Anglo-Saxon legal culture. 2013
[16] GRIMM, Jacob. Teutonic Mythology. Vol. I. Transl. by James Steven Stallybrass. 1882.
[17] GRIMM, Jacob. Teutonic Mythology. Vol. IV. Transl. by James Steven Stallybrass. 1888.
[18] GRIMM, Jacob. Teutonic Mythology. Vol. III. Transl. by James Steven Stallybrass. 1883.