Alguns fragmentos do paganismo em Bēowulf
junho 02, 2018
por Daniel Seaxdēor
O poema Bēowulf, na minha opinião, traz traços pouco
duvidosos de que foi originalmente uma história pagã. Anglos e jutos
vieram da península da Jutlândia (no que é a atual Dinamarca), de onde
também vieram os danos por um longo tempo, mesmo antes da Era Viking.
Sugere-se que a Inglaterra tenha sido oficialmente convertida no século
VII. Todavia, ainda no século VI na Ânglia Oriental enterrava-se na
fazenda de Sutton Hoo quem acredita-se ser o cyning (rei)
Rædwald, e tanto a disposição do enterro, tipicamente pagã, quanto a
arte envolvida nas partes metálicas, similar àquelas de Valsgärde, na
Suécia, nos fazem perceber que a ligação entre paganismo e os nórdicos
foi mais duradoura do que comumente se pensa.
Todavia, o poema Bēowulf é datado nunca antes do século VIII e nunca depois do século XI. Em si, a história retrata o drama do cyning
dano Hrōðgār que, após construir seu salão de hidromel, passa a ser
atacado por uma besta chamada Grendel, a qual, invejosa da alegria que
se passava lá, espalha a morte e a desgraça, impedindo que os festejos,
típicos da sociedade pagã, possam acontecer. Lemos então, nos versos
170-188 do poema:
“Estes foram tempos difíceis, de partir o coração
Para o príncipe dos Scyldinga; sábios poderosos,
Os mais altos da região, prestariam conselho,
Planejando como melhor os defensores ousados
Podem resistir e repelir ataques repentinos.
Às vezes, em construções sagradas [hærgtrafa],
cultuando (honrando) ídolos [wīgweorþunga], fizeram juramentos
Que o assassino das almas [gāstbona] pudesse vir em seu auxílio
E salvar as pessoas. Esse era o costume [þēaw] deles
Sua esperança (fé) pagã [hǣðenra hyht]; profundamente em seus corações
Eles se lembravam do inferno. O Todo Poderoso Mesurador [metod]
De boas ações e más, o Senhor Deus [drihten god],
Chefe dos Céus [heofena helm] e Alto Rei do Mundo,
Era desconhecido para eles. Oh, amaldiçoado é ele
Que na hora do problema tem que empurrar sua alma
No abraço do fogo, perdendo a ajuda;
Ele não tem para onde se virar. Mas abençoado é ele
Que depois da morte pode se aproximar do Senhor
E encontrar amizade no abraço do Pai”.
Para o príncipe dos Scyldinga; sábios poderosos,
Os mais altos da região, prestariam conselho,
Planejando como melhor os defensores ousados
Podem resistir e repelir ataques repentinos.
Às vezes, em construções sagradas [hærgtrafa],
cultuando (honrando) ídolos [wīgweorþunga], fizeram juramentos
Que o assassino das almas [gāstbona] pudesse vir em seu auxílio
E salvar as pessoas. Esse era o costume [þēaw] deles
Sua esperança (fé) pagã [hǣðenra hyht]; profundamente em seus corações
Eles se lembravam do inferno. O Todo Poderoso Mesurador [metod]
De boas ações e más, o Senhor Deus [drihten god],
Chefe dos Céus [heofena helm] e Alto Rei do Mundo,
Era desconhecido para eles. Oh, amaldiçoado é ele
Que na hora do problema tem que empurrar sua alma
No abraço do fogo, perdendo a ajuda;
Ele não tem para onde se virar. Mas abençoado é ele
Que depois da morte pode se aproximar do Senhor
E encontrar amizade no abraço do Pai”.
Aqui nós temos uma situação muito interessante. Se for mesmo uma obra produzida anterior à Era Viking, Bēowulf
carrega uma dualidade interessantíssima, na qual possivelmente um poeta
cristão anônimo, ao encontrar o poema, é obrigado a inserir os últimos
nove versos da citação como forma de amenizar o tom totalmente pagão que
subjaz a trama da história.
Pouco após o relato, e mais próximo ainda se excluirmos os versos que
são possivelmente uma adição tardia, Bēowulf então atravessa o mar com
seu comitatus (tropa de guerreiros), e como um hæleþ (herói) oferece ajuda a Hrōðgār, lembrando dos favores do passado que esse cyning havia feito ao pai de Bēowulf.
Toda essa situação, em si, é bastante interessante e tem muito a nos ensinar enquanto heathens
modernos. Primeiro, que, se as datações fornecidas pelos acadêmicos
estiverem certas, ainda no século VIII, num período bem anterior às
colônias dos piratas invasores do norte terem se espalhado pela
Inglaterra, e, junto com elas, o seu paganismo (algo atestado em
homilias da Igreja anglo-saxã ainda no século XI) nós temos o poeta de
Bēowulf categoricamente afirmando que as camadas populares preservavam
seus costumes ou þēaw, que é uma palavra bastante comum para se referir ao que modernamente chamamos de “religião”, cultuando ídolos (wīgweorþunga), oferecendo-lhes sacríficios, como diz a tradução de Seamus Heaney do poema, a uma figura no mínimo curiosa: o Gāstbona.
Gāstbona é um título curioso, comumente traduzido por
“assassino das almas”, “assassino de espíritos”, e, dado o contexto
oferecido pelo poeta não era ninguém menos que uma divindade da guerra,
ou um psicocompo (divindade que carrega mortos para o submundo) como
Wōden.
Outra coisa importante a se notar é a scyld (necessidade) que move a Wyrd
(“Aquilo que veio a ser”, grosseiramente traduzida como “destino” ou
“curso dos eventos”). Bēowulf durante todo o tempo claramente age de
acordo com necessidade imposta pela Wyrd: primeiro, Bēowulf era herdeiro de uma obrigação de honra para com Hrōðgār, já que esse cyning havia ajudado seu pai no passado.
Por outro lado, Bēowulf encara Grendel desarmado, lançando-se na teia da Wyrd,
sabendo que seu destino já havia sido determinado, e só restava
encará-lo com coragem e vencer, ou cair tentando: como diz Stephen
Pollington: a Wyrd sorri para os corajosos, e apenas jogando-se contra
ela é que pode-se esperar qualquer alteração de seus desígnios, o que
também acontece graças à scyld.
Tais valores vão ecoar culturalmente muito além da conversão oficial ao cristianismo, sendo vistos na poesia, e nos atos de cyningas
(reis) como, digamos, Harold Gōdwines Sunu, o último rei anglo-saxão da
Inglaterra, o qual lutou para manter a cultura anglo-saxã, perdendo a
sua vida em batalha, em vez de resignar-se à dominação normanda. Tudo
isso está envolto com o fato de que Bēowulf é o herói enviado pelo Gāstbona para resolver os tormentos do povo.
CONCLUSÃO
Disso podemos depreender que mesmo antes da invasão dos escandinavos,
havia uma forte tradição pagã na Inglaterra que ainda era capaz de
influenciar diretamente os eventos em narrativas populares de um scop
(poeta) tão tarde quanto o século VIII ou mais, aterrorizando a elite
letrada cristã que registrava os versos e tentava mascarar a influência
do þēaw (costume, religião) popular e sua hǣðenra hyht (fé pagã), a qual os levava a fazer wīgweorþunga (culto/honra de ídolos) em hærgtrafa
ou construções sagradas, provavelmente alguma espécie de santuário ou
relicário, o qual ainda era usado para culto de deuses guerreiros como
Wōden, divindades invocadas em tempos de guerra, capazes de inspirar
força e coragem naqueles que as cultuavam. O uso do termo Gāstbona
em si, apesar de uma referência aparentemente pejorativa, revela o
caráter da entidade, a qual provavelmente era conhecida dos anglo-saxões
na época em que o poema era oralmente recitado.
Essa forma de encarar a divindade como um æþeling, um nobre
guerreiro, será transmitida para a fase inicial do cristianismo
anglo-saxão, onde Cristo vai assumir muitas das funções de Wōden, como
visto no poema Dream of the Rood, o qual é apoiado pelo épico saxão Heliand, ambos apresentando uma versão bastante germanizada e nada pacífica de Jesus.
Para nós, pagãos contemporâneos, fica a lição: através do culto das
imagens de uma divindade guerreira como Wōden, Seaxnēat ou Tīw e o
oferecimento de ofertas, esses antigos poderes irão nos responder, não
importa quanto os cristãos odeiem, resistam ou neguem. E elas estão
prontas para nos fazer resistir aos monstros do ūtanġeard e o perigo que eles oferecem para a tribo.
Agradecimentos ao Eohwine (Filipe Breda) quem me acompanhou em parte dessa discussão e na formulação do pensamento.
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