O bem e mal no mundo heathen anglo-saxão

Hām » Ética » Bom (gōd) e mal (yfel)


Que os conceitos de bem (inglês antigo gōd, til; inglês moderno good) e mal (inglês antigo yfel; inglês moderno evil) existiam entre os anglo-saxões se demonstra pela identificação dos termos cristãos em palavras de origem germânica, e portanto pré-cristã (ambos vem do germânico comum: yfel de *uƀelaz, e gōd de *gōđaz). Todavia, o entendimento desses termos nos tempos pré-cristãos deve ter sido bem diferente, já que os anglo-saxões não eram tão influenciados pela religião de Roma antes da missão de Agostinho, enviada pela igreja católica para converter os primeiros ingleses.

Longe de querer dizer que este é o último tratado sobre o assunto, a proposta deste texto é ao contrário debater aspectos mais evidentes do bem e mal dentro do contexto do heathenismo pelo que eles podem ser e pelo que eles foram, antes do cristianismo, convidando o próprio leitor a repensar estes conceitos por si, com uma percepção de mundo mais próxima dos heathens anglo-saxões, felizmente o completando com suas próprias investigações.

O que é bom em nossa sociedade é aquilo que é entendido como meta dentro da visão judaico-cristã. Nesse sentido, "bom" significa alguém "próspero financeiramente, gentil para com os outros, que possui fé no deus cristão, que não fere (abertamente, diretamente ou com as próprias mãos) aos outros". A fonte do "bem" que inspira é equivalente ao deus cristão. Essa forma de enxergar o "bem" está tão arraigada na mentalidade ocidental moderna que comumente nos movimentos de reavivamento do paganismo o "bem" e o seu oposto "mal", que é identificado com "o inimigo, Satanás, que engana, fere e mente, levando a alma para a corrupção" são completamente ignorados, vivendo-se em um mundo que seria, em termos nietzscheanos, além da moral, além do bem e do mal. Mas não necessariamente ignorar esses conceitos é superá-los.

O mundo heathen anglo-saxão não possuía nada de amoral, embora, por outro lado, também não possua nada do moralismo cristão. Se "bem" e "mal" existiam, é importantíssimo, por outro lado, que eles não existiam dentro do que entende-se por essas palavras no cristianismo ou nos tempos modernos. A conduta esperada de um humano para que ele fosse considerado "bom" ou "mal" era radicalmente diferente. Dentro de uma ótica anglo-saxônica podemos ver isso por exemplo na própria forma que o deus cristão foi chamado na poesia anglo-saxã. Os colonos germânicos da Grã-Bretanha, que felizmente desconheciam o platonismo, pensavam esse único deus não exatamente como a fonte do Bem (com letra maiúscula pois seria aí nome próprio), mas como um "Líder de Exércitos, Senhor Guerreiro Tribal", um Dryhten.

O dryhten é literalmente "o que comanda o dryht"; dryht, por sua vez, é um sinônimo de weorod, uma tropa de guerreiros. Se no cristianismo mediterrâneo o seu deus é o modelo do Bem platônico, no cristianismo insular ele é o modelo de líder guerreiro, o ápice do sidu ou þēaw (costume). No poema A Batalha de Maldon (The Battle of Maldon) espera-se que o líder da tropa de guerreiros (Dryhten) tenha sua morte vingada no campo de batalha por aqueles que lhe juraram lealdade na vida ou na morte, e se esse líder cair, os seus þeġnas (isto é, os seus guerreiros jurados e protetores) devem levar vingança ao assassinato de seu amado líder. Essa vingança tinha três formas de ser efetuada: 1) os þeġnas lutam e matam todos os responsáveis pela morte de seu líder (isto é, o exército rival); 2) na impossibilidade de se conseguir isso, os þeġnas precisam morrer em batalha tentando a vingança, sobreviver ao dryhten era considerado desonrado;  com exceção apenas se 3) os ofensores pagarem um wergild, isto é, um valor estipulado em dinheiro para reparar a morte do dryhten.

Duro como isso possa parecer, é importante ressaltar que essa relação não é unilateral. O dryhten, por sua parte, tem várias obrigações para com seus þeġnas. No poema O Andarilho (The Wanderer), o poeta relata algumas das atitudes esperadas por ele de um dryhten: doação de presentes (em especial anéis de ouro e equipamento de guerra), um modo de vida baseado em banquetes (symbel), canto de poesia sobre feitos heróicos, regados com vinho ou hidromel, em volta do fogo do salão de hidromel; já o poema Deor menciona também o presenteamento de terras. O termo inglês antigo þeġn significa literalmente "retentor, aquele que recebe ou retém", e isso é bem significativo de seus benefícios. O deus cristão é apresentado como o exemplo ideal desse dryhten, nos tempos anglo-saxões pós-conversão. Isso evidencia por si só o quão pagão ainda era a ideia inicial dos primeiros cristãos germânicos na Grã-Bretanha e o que eles identificavam como bom.

Assim paveamos bastante o caminho para entender a visão de "bem" e "mal" germânica e anglo-saxã em um contexto heathen. A sociedade anglo-saxã era inicialmente um conglomerado de territórios menores (que se simplificaram através de guerras e casamentos até chegarem aos conhecidos sete da heptarquia inglesa) que possuíam um cyning como seu líder religioso-militar. Um cyning não era um mero déspota acima de todos os outros. Se por um lado ele legitimava seu poder através de uma genealogia que o ligava a deuses (fundadores do mundo e/ou de seu povo), e isso se evidencia pela longa vida de nomes de divindades como Ġéat, Wóden, Seaxnéat, Bældæġ, Ing, etc., em genealogias reais em tempos cristãos, por outro lado, como cita Tácito, ele lidera com base na capacidade de persuasão, a dizer, na capacidade de incitar os homens leais a si a lutarem consigo, não por mera autoridade. É pela inteligência e respeito a antigos códigos de reconhecimento de poder, e também pela liberalidade que o cyning tem seu cargo; a palavra cynn-ing pode ser dividida em duas partes: cynn, origem do inglês moderno kin, "família, parentes" e -ing um sufixo que denota afilição, literalmente significando "filho de", ou seja, o cynn-ing é o "filho daqueles com quem temos parentesco", o que o afasta bastante da noção de líder do povo como rex, isto é, aquele que rege, o rei, que está fora ordenando a sociedade. A função do cyning era proteger a friþ, isto é, a "paz, riqueza, harmonia, prosperidade, fartura de colheitas". Seu poder nunca foi ilimitado, o cyning sempre precisava estar em conformidade com o witan, o grupo de sábios, e não era um cargo essencialmente hereditário, os witan tinham liberdade de escolher entre os æþelingas (elegíveis ao trono) quem seria o cyning.

O cyning é o tipo máximo do dryhten para um humano vivo, cyning é assim o modelo do que os anglo-saxões consideravam como "bem". O bem significa então a manutenção da friþ dentro do grupo ou sociedade, e o mal, obviamente, aquilo que opõe-se a isso. A sociedade anglo-saxã era uma sociedade de tradição oral, logo, a palavra tinha uma importância essencial. A palavra proferida precisava ser equivalente aos fatos perceptíveis. Por isso a mentira era um fato essencialmente desestabilizador da friþ, e portanto, mau. A posição do cyning dentro da sociedade heathen era tão frágil que esse mesmo código de relações entre o cyning e o povo e a terra, na Suécia, levou ao sacrifício de Domald pelo seu povo, uma vez que ele foi um cyning que tinha sido incapaz de propiciar boas colheitas.

Poderíamos falar então em três características essenciais do que é bom (gōd) em termos heathens:
  • 1) o que é bom é aquilo que protege e mantém a friþ, a harmonia, a união e a prosperidade do grupo;
  • 2) o que é bom é aquilo que vinga as ofensas proferidas contra o grupo de parentesco (cynn) ou de guerreiros (dryht, weorod);
  • 3) a doação de presentes é considerado algo bom;
O que é mau (yfel) pode ser igualmente definido como:
  • 1) o que é ruim é aquilo que perturba a friþ, a harmonia, a união e a prosperidade do grupo, causando intrigas, fome ou enfraquecimento;
  • 2) é ruim aquele que não vinga as ofensas proferidas contra o grupo de parentesco (cynn) ou de guerreiros (dryht, weorod), ou seja a covardia é má;
  • 3) quem é ruim é avaro;
Esse aspecto de liberalidade com um ideal do que é bom (gōd) aparece em algumas ocasiões no mundo anglo-saxão. Nas Máximas I (Maxims I), por exemplo, lemos que lað se þe londes monað, leof se þe mare beodeð, ou seja "odioso é aquele que clama a posse da Terra, amado aquele que oferece mais". O dicionário Bosworth-Toller de inglês antigo na entrada para cyning atesta que este é um líder do povo e nunca da terra, a terra nunca foi uma propriedade estatal pertencente ao cyning da qual seus vassalos tinham mero direito de usufruto.

Mas não apenas isso, pela poesia heroica anglo-saxã abundam menções ao dryhten como "doador de presentes", "doador de ouro", "doador de aneis de ouro"; seu trono é referido como "cadeira de presentes". E ainda há mais. A lenda do  gōd cyning (bom rei) Scyld Scefing estava ligada a dois grandes despachos de ouro: o que o trouxe ao seu nascimento e o que o levou através da vida, no poema Beowulf. Dois barcos cheios de ouro e armas foram preparados para suas viagens para dentro e para fora da vida. Enterros como o navio de Sutton Hoo (no qual acredita-se que o rei anglo Rædwald foi enviado para o além da vida) comprovam a veracidade de tais despachos[1]. Ou seja, um dos aspectos de ser bom era distribuir riquezas, não apenas acumulá-las.

O que é bom é honrado, porque "honra" no mundo germânico significa "correta manutenção da friþ ou então vingança contra seus ofensores". Esse padrão de honra pode ser visto em duas clássicas instâncias da literatura germânica: no sacrifício exigido pelos þeġnas de Byrhtnōð no já citado poema A Batalha de Maldon; e no mundo nórdico na Saga de Egil Skallagrimson, onde o pai é confrontado com o código de feudos e vingança entre parentes de pessoas ofendidas (neste caso, mortas) e os ofensores de seu grupo (cynn). Em ambos os casos, sobreviver à própria honra é considerado mau, vergonhoso.

Sobre o mal (yfel) fica observável que ele ao mesmo tempo que reflete o oposto do que seria considerado gōd, também reflete especificamente uma característica particular disso, retratada na Edda em prosa de Snorri Sturluson, onde o autor diz que a serpente Níðhǫggr alimenta-se dos mentirosos e quebradores de promessas e juramentos. A mentira e o egoísmo, dentro do mundo germânico, pautado por uma noção não Romano-centrada, isto é, numa mentalidade baseada na centralidade do grupo e numa psicologia dividualista (onde cada humano faz parte de uma consciência além-do-indivíduo, divisível entre outros, expressa no coletivo de pessoas que possuem friþ), é tão danosa quanto, dentro de nossa sociedade, um membro de nosso corpo adoecendo, ou erguendo-se contra o resto do corpo.

Um aspecto importante a se comentar ainda é a questão da eternidade. A noção de permanência indefinida como algo moralmente bom e exemplar não é necessariamente algo bom, no sentido pagão, isto é, um deus não precisa ser "eterno" para ser bom e verdadeiro. Wóden, muito provavelmente, a dizer pelo seu papel como cabeça em genealogias reais e o caráter das suas menções nos poemas Máximas I e Encantamento das Nove Ervas (Nine Herbs Charm) era um exemplo vivificado do que se entenderia por bom numa ótica pré-cristã. Mas como visto em seu correspondente escandinavo Óðinn, ele não necessariamente seria entendido como eterno (o deus caolho termina como presa do lobo Fenrir no manuscrito islandês de Sturluson acima mencionado).

Logo, bondade (e mesmo poder supremo) não necessariamente seriam entendidos como coisas diretamente ligadas a eternidade, no sentido de que "elas não podem ter fim e melhor é se não tiverem começo também" (um óbvio recurso heurístico impossível na realidade observável). O heathenismo antigo, dado pelas suas evidências próprias e de cultos aparentados em sociedades que desconhecem as doutrinas mediterrâneas, sejam greco-romanas, sejam judaico-cristãs, celebra a realidade, a Natureza, que é um ente vivo do qual somos parte e do qual ele é parte de nós. Pode-se tomar como suficiente prova para esta questão o clássico relato de Bede na sua obra propagandística Historia Ecclesiastica Gentis Anglorum:
"A atual vida do homem, ó rei, a mim parece, em comparação com aquele tempo que é desconhecido para nós, como o leve vôo do pardal através do salão onde vocês sentam para ceiar no inverno, com seus comandantes e ministros, e um bom fogo no meio, enquanto as tempestades de chuva e neve prevalecem lá fora; o pardal, eu lhe digo, voando vem por uma porta, e imediatamente vai para fora em outra. Enquanto ele está dentro, ele está a salvo da tempestade invernal; mas depois de um curto espaço de bom clima, ele imediatamente desaparece da sua visão, em direção ao negro inverno do qual emergiu. Então, essa vida do homem aparece como um espaço curto, mas do que veio antes, ou do que está a se seguir, nós somos totalmente ignorantes. Se, assim, esta nova doutrina contém algo mais certo, parece justo que devemos seguí-la".
Pode-se argumentar que a visão de Bede é uma mera tentativa cristã de renegar algo que sequer conhecia, uma vez que a voz dos pagãos da época é desconhecida dos escritos, mas também pode-se notar que a eternidade é sempre uma noção que os cristãos oferecem como valor superior, e é isso que é necessário se questionar. Dos vários processos conversórios dos cristãos que pessoalmente conheço, "eternidade" quase sempre parece uma noção estranha aos seres mais poderosos de seus respectivos universos pré-cristãos e pré-contato com o ocidente mediterrâneo. Logo, os ēse não precisam ser eternos ou imortais, e nem por isso são piores que outros deuses de outros sistemas de crença. Eternidade não positiva superioridade no pensamento nativo de muitos povos (mitologias ameríndias são boas provas disso). O heathenismo parece muito mais uma visão ligada à passagem que à permanência, e vê o que passa, muda, se aperfeiçoa (e não o que fica eternamente imóvel) como o objetivo, o superior.

Em resumo, se o conceito de gōd dentro do mundo anglo-saxão é bastante diferente (embora possua pontos de contato) da noção de "bem" ocidental, em última instância baseada no platonismo, e o mesmo pode-se dizer da noção de yfel, todavia, essas noções possuem um modo operacional e lógica simples de funcionamento comprovado pelo tipo de arquétipos que eram considerados como louváveis através da poesia e literatura mais secular, e mesmo de uma análise crítica do material inicial da conversão, que a nós chegou dos tempos imediatamente após o paganismo anglo-saxão.

Nota
[1] Obviamente o caso de Sutton Hoo evidencia um tipo de túmulo em que o morto levava consigo seus pertences para o outro mundo, e não os divide. Todavia, em Beowulf o poeta mesmo tem consciência que o navio foi pilhado por algum desconhecido. O que o enterro real de Sutton Hoo comprova é somente a veracidade do relato de Beowulf.

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